Conteúdo: de volta para o futuro
Design universal, voz, inteligência artificial, big data: conheça algumas das tendências que prometem revolucionar o livro na próxima década.
Texto Gabriela Dias e Ivonete Lucírio
O livro é uma das tecnologias humanas mais duradouras: já se vão cerca de quatro milênios desde que surgiram as primeiras publicações em rolo. Ao longo desse tempo, o livro foi perseguido, proibido e até destruído, mas sempre achou um jeito de se reinventar. No século 21, não tem sido diferente.
A transformação digital do livro começou, de maneira tímida, na década passada. Os e-books surgiram imitando seus primos de papel, e assim continuaram por alguns anos, até que a tecnologia e os novos dispositivos de leitura — como e-readers, smartphones e tablets — permitissem sua evolução.
Segundo Reinaldo Ferraz, coordenador do NIC.br na área de publicações digitais e internet das coisas (IoT), esse desenvolvimento tecnológico vem modificando a forma como consumimos conteúdo. “Hoje é possível ler um livro digital em um aparelho e continuar em outro, seja ele um celular, computador ou e-reader. Imagino que no futuro teremos experiências cada vez mais ricas, com conteúdos web interagindo com livros, com outros leitores e com outros dispositivos”, diz ele.
Flexibilidade, uma característica fundamental
Parte desse caminho deve passar por uma maior adequação do livro a cada leitor. A flexibilidade é uma das tendências para a próxima década apontadas por André Matos, engenheiro de computação e CEO na Lumis. “O material didático do futuro será adaptável, fluido. No novo Ensino Médio, por exemplo, estudantes com diferentes itinerários formativos terão materiais distintos. Já se o objetivo for passar em determinado vestibular ou no Enem, o livro de cada aluno se adaptará a isso”, comenta.
Isso não quer dizer, porém, que o professor ficará sem saber o que sua turma está fazendo. Para André, um dos grandes erros dos últimos anos foram as tecnologias adaptativas, em geral voltadas para a autoinstrução. “Devemos tirar proveito da inteligência artificial e do big data para ajudar o educador, direcionando a forma como ele trabalha com esse ou com aquele aluno”, aconselha Matos.
Para André, tal futuro nem está tão distante. Em sua plataforma, chamada Essia, os dados resultantes das interações entre livros e leitores já permitem gerar relatórios para a escola e para os professores. “É possível ter informações sobre uso, participação e desempenho”, garante o CEO. “A diferença é que nos próximos anos essa tendência deve evoluir muito. O potencial dos dados para promover a eficácia da aprendizagem é muito grande”.
Hoje, a Essia possibilita um certo nível de customização. “A escola pode adaptar o material didático ao projeto dela, fazendo o sequenciamento de capítulos que desejar e inserindo conteúdos próprios”. Esse livro digital sob medida pode inclusive ser reordenado ao longo do ano letivo, contanto que não haja um equivalente em papel. “O pré-requisito para adotar a Essia é abrir mão do livro físico. É uma solução voltada para escolas que desejam 100% de transformação digital”.
Todos pela inclusão
O consultor em acessibilidade Pedro Milliet concorda que o futuro pressupõe uma customização do livro com base nas necessidades dos usuários – especialmente as de inclusão. “O conceito de design universal surgiu na década de 1970, mas desde 2015 vem sendo experimentado pela Unicef no livro didático. A intenção no início era chegar em um modelo de livro digital utilizável por todas as crianças, inclusive aquelas com deficiência motora, visual ou auditiva”.
Um dos desafios agora é desenvolver um padrão que funcione também para quem tem dificuldades de aprendizagem. Nessa categoria se encaixam desde alunos com déficit de atenção até casos mais específicos, como deficiência intelectual (síndrome de Down) ou psicossocial (autismo, por exemplo). “A partir de 2018 iniciamos pilotos no Quênia, Paraguai e Uruguai. É preciso desenvolver primeiro para países com menos recursos para que seja viável universalmente”, alerta Pedro.
O consultor acredita que a década seguinte verá o nascimento de um livro universal que “beneficiará todas as crianças, não apenas aquelas com deficiências. Podemos esperar que em dez anos o livro com design universal esteja implantado”. Ele espera que esse novo modelo empodere também os pais e professores, os quais vão precisar de formação específica. “É preciso treino para trabalhar com um formato e conteúdo tão diferentes daqueles com os quais se está acostumado”, explica.
Pedro ressalta que, segundo um relatório global da Unicef, crianças com deficiência têm mais chance de não completar a educação básica. Em países pobres ou em desenvolvimento, por exemplo, apenas de 1% a 2% dos alunos surdos são alfabetizados em língua de sinais. Para ele, o design universal e o treinamento de professores são medidas essenciais para reverter esse quadro de exclusão.
Integrar para sobreviver
Há outro ponto em que os especialistas concordam: a importância do áudio para o livro do futuro. Eles lembram que, na verdade, os audiolivros já são um fenômeno (ver quadro). “Na Essia já temos escolas perguntando se os alunos também podem ouvir os livros”, relata André. Para Pedro, a importância desse recurso tem a ver, de novo, com a inclusão. “É fundamental para deficientes visuais. Mesmo no design universal, o áudio pode ajudar a integrar melhor o conteúdo interativo”.
Nos próximos dez anos a tendência se aprofundará, dizem eles. “Precisamos trabalhar em modelos de livro em que você possa usar a voz como forma de interação, como interface”, defende André. Para Reinaldo, do NIC.br, a tecnologia vai possibilitar “a imersão cada vez maior do usuário” e deve abranger não só o livro digital, mas também “diversos tipos de publicações na rede”.
Essa amplitude maior deverá marcar a década de 2020. Com a entrada do W3C (consórcio que regula a internet) na padronização técnica dos e-books, a partir de 2017, diversos grupos se formaram para repensar o formato — e eles têm até o ano que vem para anunciar suas recomendações. “Hoje já podemos acessar uma página no computador, no celular, no tablet e em outros dispositivos. Isso deve se expandir para outros tipos de hardware e software”, acredita ele.
O coordenador do NIC.br vê como “natural” a integração entre tecnologias: “A grande vantagem é que assim podemos dar o poder de decisão ao usuário. Ele vai poder escolher se quer consumir um conteúdo nos óculos de realidade virtual, no e-reader ou no telefone”. Já André lembra que, para evoluir, é preciso ficar atento aos modelos de interação das plataformas mais populares, pois elas tendem a influenciar as expectativas dos usuários. “Na Essia, por exemplo, tiramos proveito do modelo das redes sociais, que é o que as pessoas usam para se comunicar. Em cinco anos, é provável que esse modelo mude, e aí as plataformas de educação terão de se adaptar também”.
Uma geração movida pela voz
Já virou lugar comum falar que os estudantes de hoje são digital first, ou seja, nativos digitais – crianças e adolescentes para quem celulares e redes sociais são tão naturais quanto a televisão era para gerações anteriores. Mas agora há mais uma interface a ser considerada, especialmente no caso dos mais jovens: a voz.
Bem-vindo à era das crianças acostumadas a perguntar para assistentes de voz como a Siri (da Apple) ou o Google Assistente qual a distância da Terra à Lua ou como resolver uma equação. Não há dúvida de que, em breve, o conteúdo didático precisará se adaptar a esse novo cenário. “No início dos anos 2010, vimos os primeiros vídeos de bebês da geração touch, que tentavam interagir pelo toque também com materiais impressos”, lembra a especialista Tara Marsh. “As crianças que estão crescendo hoje com assistentes de voz serão parte de uma nova geração, os voice natives”.
Na verdade, a importância do áudio para o mercado editorial já é tanta que a Feira do Livro de Frankfurt, um dos maiores eventos do setor, passará a ter uma área totalmente dedicada a audiolivros, podcasts e assistentes de voz. Em 2019, a feira terá ainda uma área temática, um espaço para exposições e uma conferência relacionados ao áudio.
Mas será que, no caso da educação, ouvir uma informação seria tão eficiente quanto ler? Ao menos para adultos, parece que sim. Um estudo feito em 2016 na Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, avaliou 121 pessoas entre 25 e 40 anos, divididas em três grupos: o primeiro leu trechos de um livro não ficcional sobre a Segunda Guerra Mundial; o segundo ouviu o mesmo trecho; o terceiro leu e ouviu. Segundo os pesquisadores, não foi registrada diferença significativa entre os três grupos na compreensão e retenção das informações.
Para saber mais
MARSH, Tara. Growing up with Alexa: “voice natives”, the new digital natives. LinkedIn, fev. 2018. Disponível em: mod.lk/tmars.
Acesso em 16 jul. 2019.
ROGOWSKY, Beth A.; CALHOUN, Barbara M.; TALLAL, Paula. Does Modality Matter? The Effects of Reading, Listening, and Dual Modality on Comprehension. SAGE Open, set. 2016. Disponível em: mod.lk/educ1743. Acesso em 17 jul. 2019.
Unicef. Libros de texto digitales accesibles en diseño universal para estudiantes con y sin discapacidad. Jan. 2019. Disponível em: mod.lk/unicef43.
Acesso em 17 jul. 2019.