O Rio da Minha Aldeia
Conhecer o mundo a partir dos espaços de vivência cotidiana ajuda não só a entendê-lo como também a saber quem somos e o que nos distingue dos outros.

Texto: Rubem Barros
O ferro, como versejou Carlos Drummond de Andrade, era elemento predominante nas calçadas e nas almas itabiranas. Assim como a tristeza, o orgulho e o couro de anta que o poeta rememora na “Confidência do Itabirano”, presente em seu terceiro livro (Sentimento do Mundo), o ferro foi símbolo de dureza e riquezas nos seus primeiros tempos de investigação e conhecimento do mundo. Sua origem, mesmo transformada em imagem na parede, tornou-se permanência no homem em que ele se constituiu.
É a partir da força dessa ligação quase umbilical com o lugar onde nascemos e vivemos nossos primeiros anos de vida e de formação que os processos educacionais podem explorar o entendimento de diversas dimensões da realidade presentes na vida das crianças.
“É fundamental para a aprendizagem dos alunos trabalhar a partir de sua realidade próxima, contextualizando aquilo que se ensina. Essa é a base da teoria do Paulo Freire”, menciona Maíra Fernandes, licenciada e bacharel em Geografia e coautora de conteúdos de obras regionais do 3º ao 5º ano do PNLD (Plano Nacional do Livro Didático). A nova proposta do Ministério da Educação para os livros que chegam às escolas em 2027 prevê a valorização de estudos de ciências humanas com foco em regiões e territórios.
Como registra a BNCC (Base Nacional Comum Curricular) do ensino fundamental, é “importante valorizar e problematizar as vivências e experiências individuais e familiares trazidas pelos alunos, por meio do lúdico, de trocas, da escuta e de falas sensíveis, nos diversos ambientes educativos (bibliotecas, pátio, praças, parques, museus, arquivos, entre outros)”.
Trabalhar com a região em que os alunos vivem permite que eles construam identificação com o universo circundante e a própria identidade. “Antes, falava-se indistintamente de todo o território brasileiro como se fosse algo homogêneo. Quando acentuamos os aspectos locais, valorizamos a diversidade e as várias regionalidades da cultura brasileira, criando um sentimento de pertença àquele território específico”, completa Maíra.
O trabalho com questões locais enfatizando aspectos geográficos e históricos é estratégico na apreensão de várias noções que ajudam a situar a criança no mundo. Maíra, que é, também, mestre em Arquitetura com tese na área de Planejamento Urbano e Regional, lembra que a criança adquire, por intermédio da escola e das vivências familiares, a dimensão do mundo em termos espaciais. Esse olhar mais sistemático e analítico abre as portas para as diferentes escalas com que se pode trabalhar.
Nos primeiros anos do Ensino Fundamental, a espacialidade do lugar em torno do qual gira a vida da criança e de sua família representa, além do conhecimento do território, a identificação de seus laços sociais. Lugares como parques, centros comerciais, esportivos e igrejas ajudam a criar a ideia de pertencimento e uma primeira perspectiva histórica. Normalmente, a ideia de lugar é associada ao bairro ou ao perímetro em torno do qual se dão as relações sociais da criança. É o eixo de trabalho dos três primeiros anos do Ensino Fundamental. No terceiro, já entra em cena a região, conceito mais amplo que inclui também aspectos cívicos e comparações com outras regiões, da mesma cidade ou de localidades diferentes.
No 4º e 5º anos do Ensino Fundamental há uma complexificação dos espaços e das relações. Passam a ser objeto de atenção as relações e as esferas de poder (municipal, estadual, federal), os conjuntos de regras que permeiam essas relações entre eles e entre os cidadãos. “É como um lego que vai sendo construído”, compara Maíra Fernandes.
Nessa construção, as visões de Geografia e História desempenham papel fundamental. A Geografia permite explorar a curiosidade de conhecer o mundo, fornece instrumentos e balizas que dão essa oportunidade. Já a História ajuda na formação de um estudante mais crítico, que identifique, por meio da observação do território e dos hábitos daqueles que nele habitam, formas de expressão e também de opressão, questões ligadas aos direitos humanos, a partir de ações dos agentes locais.
“É papel fundamental da sala de aula estimular esse olhar e a importância da luta pela garantia de direitos junto ao poder público e o poder econômico. Lembrando que no 4º ano se ensinam os princípios fundamentais da Constituição Federal”, salienta a autora e geógrafa.
Como Trabalhar com os Alunos
Ex-professora e coordenadora pedagógica, com 30 anos de atuação em sala de aula, a bacharel e licenciada em história Maria Lídia Vicentin Aguilar é entusiasta da perspectiva de trabalhar a partir de conteúdos regionais. Também autora de didáticos, ela explica que hoje há um movimento intenso nas universidades brasileiras em direção à história regional, que ela relaciona à criação de várias instituições públicas federais e estaduais no ensino superior. É um processo elucidativo da diversidade sociocultural e histórica na formação do Brasil.
“Há décadas temos as diretrizes curriculares nacionais, mas é importante aproximar os conteúdos daquilo que a criança vive em seu dia a dia. É uma proposta que será bem recebida, pois fala diretamente àquilo que está no universo dos alunos. A chance de aprender mais e melhor cresce. É o que diz a minha experiência como coordenadora”, diz ela, que durante três anos exerceu a função no Colégio Nossa Senhora do Morumbi, em São Paulo.
A educadora sugere um caminho para potencializar as aprendizagens, com alguns passos válidos tanto para o olhar sobre o espaço como também sobre o tempo histórico. A proposta é composta de cinco passos, a saber: uma educação do olhar; o desenvolvimento da capacidade de fazer perguntas significativas (ao passado e ao presente); a procura por lugares e pessoas que respondam a essas perguntas; o ato de fazer registros; e a reflexão sobre as pesquisas e os dados levantados. A seguir, uma breve síntese de cada um desses aspectos do trabalho.
Confidência do itabirano
Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.
De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil;
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa…
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
Carlos Drummond de Andrade

A Educação do Olhar
Os professores devem propor atividades que consistam na observação – o mais detalhada possível – dos espaços em que os estudantes transitam, partindo de seu bairro, de sua escola, e alargando o olhar, ao longo dos anos iniciais, para o seu município, seu estado e sua região do país. É importante assinalar os elementos da cultura regional que fazem parte da cultura do aluno.
Um bom exemplo disso são os hábitos alimentares: quais são os alimentos que constituem, tradicionalmente, o café da manhã e as outras refeições daquele lugar? O que é único, em termos de costumes, daquela região, e como foram construídos ou incorporados ao longo do tempo?
Do ponto de vista do espaço físico, é importante a observação do próprio entorno, educar o olhar para o passado, identificar os vestígios de outros tempos que ainda estão presentes.
Fazer Perguntas
Ponto de partida para fazer pesquisas: Como era? Por que era assim? Se não é mais, por qual motivo? O professor deve ajudá-los nesse processo de questionamento do passado, lembrando que as perguntas são diferentes conforme a idade. É recomendável a busca de fontes orais, com depoimentos de pessoas mais velhas, que saibam cotejar passado e presente.
Esse exercício ajuda o estudante a ter percepção do processo histórico, o que muda, o que permanece, como e por que muda. “Ao propor a construção de uma história local, regional, isso permite desenvolver conceitos fundamentais para a disciplina”, frisa Maria Lídia.
Lugares e Pessoas que Respondam
Além das entrevistas com pessoas do lugar, uma boa dica é procurar os marcos de memória das localidades e seu significado para aquela população. Mesmo em lugares menores há museus, bibliotecas ou acervos particulares. Com isso, podem-se construir as noções de patrimônio histórico, artístico, cultural e natural, aspectos que remetam à formação de identidade e singularidade daquela população.
Fazer Registros
É imprescindível que o que foi pesquisado seja registrado. Para isso, os professores podem se utilizar de diferentes estratégias e linguagens, como o uso de gravações com celulares, em áudio e vídeo, com registros de lugares, manifestações artísticas, pessoas e entrevistas. Também podem estimular a produção de sínteses textuais, desenhos e pinturas.

“O raciocínio espaço-temporal baseia-se na ideia de que o ser humano produz o espaço em que vive, apropriando-se dele em determinada circunstância histórica. A capacidade de identificação dessa circunstância impõe-se como condição para que o ser humano compreenda, interprete e avalie os significados das ações realizadas no passado ou no presente, o que o torna responsável tanto pelo saber produzido quanto pelo controle dos fenômenos naturais e históricos dos quais é agente.”
BNCC Ensino Fundamental, Ciências Humanas
Reflexão Sobre as Pesquisas
Momento em que o papel do professor é essencial para ajudar os estudantes a organizar o material coletado, pensar acerca dos sentidos de suas pesquisas, ver o que é próprio do lugar e o que é comum a outras localidades, digerir conceitos e a importância daquilo que foi observado.
Maria Lídia lembra que os passos propostos acima estão na BNCC e que os livros regionais agora propostos pelo MEC dialogam explicitamente com a Base.
E, se já houve, em outros momentos, recortes de história de estados e municípios, a proposta que se coloca agora se distingue pelo fato de não propor a simples oferta de conteúdos prontos e memorizáveis, mais sim de trazer ferramentas que permitam ao aluno se apropriar progressivamente de conceitos para pensar a Geografia e a História.
Para a professora, é uma possibilidade de refrear a crescente tendência de homogeneização, “algo que faz tábula rasa de todas as diferenças culturais”. “O mundo está ficando cada vez mais igual. Dessa forma, vamos perdendo características que formam nossa identidade, como os sotaques e as expressões linguísticas regionais, por exemplo”, diz ela.
Em Busca das Águas
Um bem-acabado exemplo de como fazer pesquisas do gênero no entorno da escola é realizado pela Emef Professor Olavo Pezzotti, na Vila Madalena, em São Paulo. Já há alguns anos a escola investe em trabalhos que envolvem estudos do meio, visitas a museus, parques e aparelhos culturais, inclusive de outros bairros da cidade, como a Sala São Paulo, espaço de concertos com uma das melhores acústicas do mundo.
Em 2025, no entanto, a vivência dos alunos no bairro, aliada a uma parceria com o Coletivo Vila Beija, levou um projeto dos alunos a ser selecionado, com outras nove propostas, em um edital visando à recuperação do rio Pinheiros. O projeto foi um desdobramento de incursões dos alunos pelo território para estudar os córregos da região que desaguam no rio Pinheiros, cuja bacia hidrográfica foi objeto de estudo dos alunos.
O edital foi proposto pela ONG ambiental SOS Mata Atlântica, que firmou convênio com o Coletivo Vila Beija, formado por moradores da região que participam ativamente da vida na região, tendo sido bastante ativos, entre outras coisas, na formulação do Plano Diretor do município.
“Nosso sonho é fazer um ecobairro”, conta Maurício Ramos, que trabalha com comércio exterior e se dedica a levar crianças de vários colégios da região a conhecer nascentes e caminhos das águas dos córregos locais.
No caso do Olavo Pezzotti, Tatiana Uva, que desempenha a função de professora orientadora de educação integral, conta que o tema escolhido para pesquisas no ano foi a água. E, em janeiro deste ano, a região foi “brindada” com um evento climático que despertou a atenção de todos: fortes chuvas provocaram enchentes, derrubando um muro da escola. Além disso, o sacolão próximo ficou alagado e casas vizinhas ao Córrego das Corujas foram danificadas.
“Tivemos essa proximidade com o assunto e começamos a observar como nos relacionamos com as águas da cidade. Nasceu daí o Projeto Travessia das Águas. Todas as turmas da escola tiveram contato com o entorno da escola e perceberam a dinâmica dos caminhos dos córregos, viram como eles ficam encobertos em vários pontos da cidade”, relata Tatiana.
Os alunos dos diversos anos utilizaram formas variadas de relato de suas vivências. Os menores, que ainda não estavam alfabetizados, fizeram pinturas que tentavam traduzir a escuta das águas; os alunos do 4º e 5º anos fizeram experiências em que constataram a presença de protozoários; enquanto os alunos dos anos finais desenharam o croqui do caminho do córrego.
Os estudantes também buscaram responder a perguntas sobre como era antes o caminho do córrego e, objeto de reflexão, até quando achavam que haverá água disponível.
Segundo a professora, todo o trabalho foi construído e realizado coletivamente. Como coordenadora, ela atua para ajudar os docentes das turmas dos anos iniciais a ampliar o repertório de ensino-aprendizagem com atividades diferentes. “Tenho a função de viabilizar, mas tudo é desenvolvido pelos professores de cada turma. A ideia é que uma prática como essa integre o Projeto Político-Pedagógico da escola”, resume.
Que as águas do Córrego das Corujas sejam memórias para as crianças como o ferro de Itabira foi para Carlos Drummond de Andrade, mas que doam apenas como saudade da infância, e que estejam vivas o suficiente para ser lembradas.
Para Saber Mais
- ANDRADE, Carlos Drummond de. Sentimento do mundo.33 ed. São Paulo: Record, 2022.
- BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, DF: MEC, 2018. Disponível em: https://mod.lk/ed27_pd1. Acesso em: 19 ago. 2025.
- FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. 74 ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2019.
- SOS MATA ATLÂNTICA. SOS Mata Atlântica. Página inicial, 1986. Disponível em: https://mod.lk/ed27_pd2. Acesso em: 19 ago. 2024.
