Convivência que aprisiona: a jornada para enfrentar o bullying nas escolas
Um panorama sobre a urgência de prevenir e combater o bullying, seus impactos sobre os estudantes e a segurança pública e as estratégias para estabelecer uma cultura de paz nas escolas
Texto: Lara Silbiger
Pelos corredores e salas de aula, o bullying ainda aprisiona tensões, dúvidas, sofrimentos, traumas e uma infinidade de desafios nas escolas país afora. A cada dez diretores, praticamente quatro relatam casos de bullying em suas instituições de ensino, segundo revela o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023. As localidades com mais registros são Santa Catarina, Distrito Federal e São Paulo.
O Anuário ainda destaca o risco que o bullying representa para a segurança pública como um todo. “Esse é um problema que agrava os riscos de ataques violentos às escolas e que não está exatamente correlacionado à incidência de outras violências nos territórios do entorno das instituições escolares”, destaca a publicação.
A princípio, o tom pode soar alarmista, especialmente em um ano como 2023, que registrou sete massacres em escolas, mas o fato é que algumas linhas de pesquisa acadêmica apontam o bullying como um dos motivadores para que os autores desses ataques retornem às suas escolas de origem. “A maior parte volta em busca de reparação da honra”, comenta Catarina Gonçalves, professora do Centro de Educação da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Formação Humana, Representações e Identidades.
Obviamente, trata-se de casos extremos, o que não diminui em nada o sofrimento de cada criança e adolescente que já conviveu ou ainda convive com o bullying dentro de sua própria escola. “Todas as formas de violência escolar e bullying violam o direito fundamental à educação e, da mesma forma, ambientes de aprendizagem não seguros reduzem a qualidade da educação para todos os estudantes. Nenhum país será capaz de atingir uma educação inclusiva e de qualidade se os estudantes estiverem expostos à violência na escola”, afirma Qian Tang, ex-diretor-geral adjunto para Educação da Unesco, em tom desafiador – e, ao mesmo tempo, propositivo –, no prefácio da publicação Violência escolar e bullying: relatório sobre a situação mundial, da Unesco.
“No Brasil, ainda estamos muito longe de construir nas escolas uma cultura de paz, na qual nenhuma forma de violência seja tolerada”, reconhece Catarina, cujas pesquisas de mestrado e doutorado focaram a convivência escolar e a formação de professores. Para ela, enfrentar o bullying implica reconhecer os direitos fundamentais do outro, respeitar a alteridade e conviver com as diferenças. “Cabe à escola, como maior laboratório social das nossas vidas, assegurar regras, princípios e valores coletivos para que toda a comunidade se mobilize e se ocupe do bem-estar, que também deve ser obrigatoriamente coletivo.”
Mas, afinal, o que é bullying?
Para começar, o bullying está longe de ser uma brincadeira de crianças. “Como ele sempre existiu, acabou sendo normalizado a vida toda. Mas bullying é uma violência. E, como tal, é intolerável”, sentencia Catarina. Ele se manifesta no ambiente escolar, de modo sistemático – ou seja, nunca uma única vez –, ao longo do tempo e sempre entre estudantes. Mas não entre quaisquer alunos. Salta aos olhos o desequilíbrio de poder, seja por popularidade, poder econômico, altura, força física ou outra forma que simbolize a superioridade de um sobre o outro.
Segundo dados da Unesco, “as crianças e os adolescentes mais vulneráveis, incluindo os mais pobres ou provenientes de minorias étnicas, linguísticas ou culturais, migrantes ou pertencentes a comunidades de refugiados ou pessoas com deficiências físicas, apresentam maiores riscos de sofrer violência escolar e bullying. Crianças e adolescentes cuja orientação sexual, identidade ou expressão de gênero não se encaixam nas normas sociais ou de gênero consideradas tradicionais são afetados de modo desproporcional”, revela o órgão no estudo Violência escolar e bullying: relatório sobre a situação mundial, originalmente publicado em 2017.
Outro aspecto que caracteriza o bullying é a ausência de motivos aparentes ou que justifiquem os atos de violência, que são intencionais e podem ocorrer de várias formas. No bullying verbal, são comuns os insultos, as ofensas e os apelidos maldosos. Em suas versões física e material, são mais frequentes empurrões, socos, beliscões, roubos, furtos e a destruição dos pertences de quem é o alvo das agressões. No bullying com viés psicológico e moral, ganham vez as humilhações, exclusões do grupo, discriminações, chantagens, intimidações e difamação. Já no sexual, são marcantes os assédios, insinuações, abusos, chantagens e até mesmo violações.
Existe ainda a modalidade virtual, conhecida como cyberbullying, que envolve a postagem, o envio e o compartilhamento de conteúdos digitais para assediar, ameaçar, extorquir, difamar e atingir de várias formas o alvo dos ataques em plataformas on-line, como grupos de mensagens, redes sociais, plataformas de jogos, entre outras que estudantes costumam utilizar. Os conteúdos podem trazer informações falsas, mensagens ofensivas, ameaças, extorsões, imagens íntimas, comentários constrangedores ou até mesmo promover a exclusão da vítima das redes sociais ou de outra plataforma.
No cyberbullying, os autores das agressões costumam atuar de forma anônima e podem atingir seus alvos a qualquer momento. “Esses conteúdos têm potencial de viralizar e, em questão de minutos, alcançar uma audiência on-line imensa”, explica Bianca Orrico, psicóloga da Safernet Brasil e doutora em Estudos da Criança pela Universidade do Minho. Ela ainda ressalta que, “embora a remoção de conteúdos ofensivos na internet seja possível, não há controle sobre quem recebeu e salvou esses arquivos”. Ou seja, o risco de revitimizar o alvo do cyberbullying permanece à espreita.
Uma das razões pelas quais o cyberbullying se perpetua no tempo é o fato de que “crianças e adolescentes vítimas desse tipo de agressão nem sempre estão dispostos a denunciar o incidente aos pais, professores ou outros adultos por medo de perder o acesso à internet, ao celular ou ao computador”, revela um relatório de 2016 da ONU. Outros motivos apontados por estudantes que são alvos das demais manifestações de bullying são “a falta de confiança nos adultos, incluindo os professores, o medo da repercussão ou de retaliações, o sentimento de culpa, a vergonha, a confusão, o receio de não serem levados a sério ou de não saber onde procurar ajuda”, revela o estudo da Unesco.
Há ainda o cenário em que a violência sistemática entre estudantes acaba sendo ignorada por professores e pais. “Em alguns contextos, eles veem as agressões físicas, as brigas e as demais manifestações de bullying como parte normal do relacionamento entre pares ou do desenvolvimento e ignoram os impactos negativos na educação, na saúde e no bem-estar das crianças e dos adolescentes”, destaca a Unesco.
Quem é quem no bullying?
Visando a uma abordagem mais didática e reflexiva, Catarina Gonçalves, do Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco, adota termos específicos para se referir aos atores envolvidos no bullying.
Autor
Em vez de “agressor”, que carrega conotação negativa e punitiva e pode rotular e estigmatizar o estudante, Catarina usa a palavra autor do bullying. Na hora de escolher o alvo, busca um indivíduo que aparenta ser vulnerável ou menos capaz de se defender.
“Isso não quer dizer que o autor seja necessariamente perverso, mas é alguém que, em determinado contexto, colocou seus valores individuais acima dos morais. Na fase de intervenção, cabe à escola motivar a reorganização dessa hierarquia de valores e ajudá-lo a compreender as consequências de suas ações e a desenvolver empatia e respeito”, explica.
Alvo
Em vez de vítima do bullying, o termo “alvo” evidencia que o indivíduo foi escolhido a dedo pelo autor e está em posição de vulnerabilidade.
O impacto no estudante alvo desse tipo de violência é profundo, com reflexos na autoestima, possível desconexão com as atividades escolares, mudanças alimentares e de sono, isolamento social e naturalização da violência. “A ideia é contribuir para que, mesmo com os traumas da situação, ele se fortaleça, se autovalorize e se indigne diante das violências sofridas”, complementa Catarina.
Espectadores
“Eles são o oxigênio do bullying, uma vez que, em geral, o autor não está sozinho”, comenta Catarina. No papel de espectadores, esses estudantes participam rindo e encorajando a violência, assistindo a ela calados, com medo de se tornarem o próximo alvo, ou simplesmente ignorando os fatos.
A boa notícia é que eles podem se tornar peças-chave para intervir. Os pares têm o poder de ajudar a identificar as evidências da violência, seja como espectadores, seja como amigos próximos do autor ou do alvo. Isso envolve não apenas relatar os incidentes, mas tentar interromper o comportamento agressivo, de forma segura e com vistas a uma cultura de paz.
Também podem mostrar apoio, solidariedade e empatia ao alvo do bullying, ajudando-o a se sentir menos isolado e mais confiante para enfrentar o problema.
Desatando as amarras do bullying
Romper as correntes do bullying exige encarar o fenômeno de frente, com uma abordagem de prevenção e combate e uma ampla rede de proteção a crianças e adolescentes. Do contrário, apenas boas intenções não surtirão efeito e ficaremos rodeados por dezenas de legislações, avanços nas políticas públicas e algumas quantas iniciativas de sucesso, e submersos em ambientes de aprendizagem não seguros e não inclusivos para todos.
Para começar, um bom ponto de partida é se debruçar sobre as linhas e as entrelinhas da Lei n. 13.663, de 2018, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) ao incluir no artigo 12 a promoção de medidas de conscientização, prevenção e combate a todos os tipos de violência, com menção especial ao bullying, e a promoção da cultura de paz entre as responsabilidades das escolas. “Entre os pontos que vale destacar está o fato de que ela não criminaliza o bullying, nem visa expor o autor das agressões, o que faz muito sentido, considerando que estamos falando de uma violência que acontece na escola e que, portanto, exige uma resposta que passa necessariamente por uma prática educativa”, comenta Catarina.
Outro aspecto que a legislação traz é o fomento à construção de uma educação baseada em valores e na formação da cidadania. “Ela implica as instituições educativas no desenvolvimento de um projeto longitudinal. Isso mexe diretamente com a cultura da escola e com a forma como ela se pensa e se organiza. Precisa atravessar seu Projeto Político Pedagógico (PPP) e o currículo”, comenta a professora da UFPE.
Tamanho desafio exige uma capacitação à altura dos professores para enfrentar o bullying, tanto na prevenção quanto na intervenção. Some-se a isso o fato de que muitas práticas de agressão acabam sendo veladas ou não sendo identificadas como violência, o que reforça a necessidade de conscientização acerca do fenômeno. “A escola ainda tem a tendência de naturalizar o bullying e o cyberbullying sem entender os impactos emocionais, psicológicos, sociais e até físicos para os envolvidos. Isso tem que ser levado a sério e demanda formação contínua e complementar dos professores, trabalho em parceria com organizações locais, conselhos tutelares, órgãos de justiça, entre outros, e proximidade com as famílias”, destaca Bianca, psicóloga da Safernet Brasil.
Prevenção ao cyberbullying no campo
“a realidade dos alunos do nosso colégio, localizado em uma área rural, é moldada pelo contato próximo com as produções camponesas e por desafios de conectividade, o que não diminui a necessidade de formar jovens competentes para lidar com as novas demandas e os desafios do mundo tecnológico, no qual o campo também está inserido.
Entre eles, estão as situações delicadas e potencialmente violentas no ambiente digital, incluindo o cyberbullying. Foi isso que me motivou a implementar a disciplina “Cidadania Digital” para duas turmas do 2o ano do Ensino Médio em 2023.
Desenvolvida pela Safernet Brasil em parceria com o Governo do Reino Unido, a disciplina aborda temas cruciais, como fake news, estereótipos nas redes, golpes, práticas violentas no meio virtual, bem-estar digital, privacidade, respeito, entre outros. Por meio de debates e projetos de intervenção sociocultural, os estudantes desenvolvem habilidades essenciais para a cidadania digital e o enfrentamento das novas expressões de violências nas redes. E já demonstram amadurecimento significativo e atuação mais responsável no meio virtual.
A formação contínua oferecida aos educadores pela Safernet Brasil, através de um curso on-line certificado, tem sido fundamental para aprofundar meus conhecimentos, esclarecer dúvidas e proporcionar uma aplicação mais eficaz da disciplina em sala de aula.
Ao abordar o letramento digital e temas como cyberbullying, estamos construindo uma base sólida para formar indivíduos conscientes e aptos a intervir em prol de um ambiente digital que preze pelo respeito, pela diversidade e pela intolerância à violência.”
Reginaldo Araújo é professor da área de Linguagens no Colégio Estadual Filinto Justiniano Bastos, Seabra (BA).
Convivência saudável faz parte do nosso PPP
“Desde 2018, o Dante oferece uma disciplina de educação socioemocional como obrigatória para o Ensino Médio. No ano seguinte, expandiu para todos os alunos, a partir do Maternal.
As novidades vieram com a Lei n. 13.663, de 2018, mas as reflexões em torno de como lidávamos com o bullying antecedem sua promulgação. Identificamos que a intervenção só acontecia quando o problema e o sofrimento já estavam instalados.
Mudamos, então, o foco para a prevenção. Trabalhando desde cedo o desenvolvimento de habilidades socioemocionais no currículo, ensinamos os alunos a nomear sentimentos, reconhecer emoções nos outros e desenvolver empatia, o que não apenas os ajuda a lidar com situações difíceis como cria um ambiente em que se sentem mais à vontade para pedir ajuda e expressar quando algo os incomoda. Isso também contribui para formar vínculos mais saudáveis.
Também entraram em cena ferramentas variadas para fazer intervenções precoces. É o caso dos formulários de bem-estar socioemocional, que são aplicados duas vezes por ano junto aos alunos para identificar situações de risco. Ou do protocolo que acionamos diante de casos suspeitos de bullying, o que nos permite reunir evidências, conscientizar os envolvidos e resgatar, o quanto antes, as relações por meio de estratégias de reconciliação.
Nosso compromisso ainda inclui a capacitação de professores para a tolerância zero em relação a casos de bullying; a atuação bastante próxima junto à equipe de vigilantes que cuidam do parque nos intervalos; e a orientação educacional das famílias sobre bullying e outras formas de violência. Não por acaso todas essas práticas estruturadas e referenciais de convivência saudável hoje compõem uma das camadas do nosso Projeto Político Pedagógico (PPP).”
Miriam Guimarães é coordenadora da orientação educacional e do projeto socioemocional do Colégio Dante Alighieri (São Paulo, SP).
Para saber mais
- ANDRADE, F. C. B.; GOMES, B. V. Educação em direitos humanos: reflexão, pesquisa e intervenção. Curitiba: CRV, 2021.
- GONÇALVES, C. C.; DE ANDRADE, F. C. B. Da violência à convivência: aprendendo e ensinando através dos conflitos na escola. Curitiba: CRV, 2020.
- SAFERNET. Disciplina de Cidadania Digital. UK Government, 2021. Disponível em: mod.lk/ed25_cx1. Acesso em: 2 out. 2023.
- UNESCO. (2019). Violência escolar e bullying: relatório sobre a situação mundial. Disponível em: mod.lk/ed25_cx2. Acesso em: 28 set. 2023.