Uma educação para desmontar os muros
O líder indígena Ailton Krenak fala sobre a educação como trilha para vencer os muros da desigualdade e sobre a necessidade de pensar seres vivos e meio ambiente como partes indissociáveis.
Texto Paulo de Camargo
Uma das mais importantes lideranças dos povos indígenas da atualidade, Ailton Krenak é conhecido por sua produção múltipla como escritor, ativista e pensador. Doutor honoris causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e ganhador do Prêmio Juca Pato de Intelectual do Ano, da União Brasileira de Escritores, Krenak passou os últimos meses isolado em sua aldeia, no município de Resplendor (MG), na margem esquerda do Rio Doce – área diretamente afetada pelo rompimento da barragem de Fundão, em 2015.
A pandemia interrompeu suas diversas atividades, como a Mostra Internacional de Cinema, em Lisboa, mas não o impediu de lançar novos livros. Escreveu O amanhã não está à venda e A vida não é útil (Companhia das Letras), bem como um texto gratuito voltado para professores, “Caminhos do bem-viver”. Seguiu também realizando lives e concedendo entrevistas.
Com seu jeito sereno, Ailton Krenak segue atento ao regime de chuvas, cuja escassez prejudicou sua horta e as roças de milho, de batata e de banana das quais cuida, pessoalmente, em sua aldeia. A Educatrix aproveitou a oportunidade para trazer algumas de suas reflexões e aprendizados para a próxima década.
EDUCATRIX Como está sendo a sua rotina durante a pandemia?
Ailton Krenak Ninguém está vivendo uma situação normal, não é? Até 2019, eu tinha circulação bem ativa, participando de eventos em várias regiões do Brasil e fora do país. No início do ano, estava coordenando uma mostra internacional de cinema, em Lisboa, chamada Ameríndia, retratando o cinema indígena no Brasil. Era a primeira mostra em que os realizadores eram indígenas, e não alguém que manda os vídeos sobre os povos. Foi uma experiência muito boa. A partir de fevereiro de 2020, tudo congelou. No dia 14 de fevereiro, voltei de uma viagem a Brasília e não saí mais. Há um ano estou em um cotidiano da minha casa, da minha família, do meu quintal. Publiquei dois livros no ano passado sem sair de casa. Foram produtos de conversas como estas que estamos tendo, mediadas pela internet. Esses títulos têm desdobramento da minha rotina aqui no quintal, plantando batata, banana, milho. No ano passado, choveu, foi bom. Neste ano, a chuva está rara, o chão está seco, e o milho que eu plantei nem saiu da terra, vou ter que plantar de novo. Cuido de uma pequena horta no quintal, tenho minha convivência com as pessoas, mas tomamos a decisão de evitar aglomeração. Não estamos folgados, não.
EDUCATRIX A pandemia provoca reflexões sobre o destino das pessoas e da Terra de uma forma integrada. Não é mais possível, por exemplo, pensar separadamente temas como questões ambientais, povos indígenas, rumos do planeta, não é?
Ailton Krenak Como diz a molecada, está tudo junto e misturado. Está tudo em contágio. É uma pena que só assim tenhamos alcançado o sentido de transversalidade, com diferentes temas, atravessando questões ambientais, políticas, étnicas e raciais. Tudo isso implodiu na nossa cara. Mas não é uma marca exclusiva da pandemia. Já temos visto revolta em vários lugares do mundo, denunciando essa espécie de metástase da lógica, que organizava tudo em caixinha, separando a história dos povos indígenas, do meio ambiente e da ciência. Essas caixinhas insustentáveis foram configuradas no século 19, e as pessoas, por preguiça ou oportunismo, trouxeram isso até o início do século 21.
EDUCATRIX Como essas caixinhas afetam a compreensão sobre os desafios do meio ambiente?
Ailton Krenak De muitas formas. Todas as conferências sobre clima já reclamavam a necessidade de vazar as caixinhas e, principalmente, de banir do debate sobre o meio ambiente ideias como a da externalidade, que empresas, corporações e escritórios de consultoria ambiental aplicam. Quando se vai fazer um Relatório de Impacto Ambiental, tudo o que é impacto externo fica de fora. Isso é uma manipulação cínica dos tecnocratas travestidos de ambientalistas e cientistas. É o que permite que uma barragem como a de Mariana, arrebentando e matando gente, acabando com a paisagem, seja vista como uma “externalidade”, e não dá nem para calcular o prejuízo. Só descobrimos que estamos ameaçados como espécie após termos destruído metade das espécies de vida selvagem com quem compartilhamos o mundo até ontem.
EDUCATRIX Diante de tantos desafios, muitas vezes se deposita na educação todas as esperanças. Mudar o futuro da humanidade depende unicamente da escola?
Ailton Krenak Nós podemos fazer uma analogia com o mundo industrial. Depois de constatar e consumir a riqueza material de uma civilização baseada no petróleo, de repente, acenaram com uma ideia que parecia novidade: a reciclagem. A educação virou a reciclagem dos medíocres. Todo político canalha pega uma criança no colo e fala que os jovens são nosso futuro e a educação é nossa Lava Jato. Como muitas outras áreas das relações humanas, da sociabilização e da produção da pessoa, a educação é apenas uma parte, especialmente quando se assume uma ideia de que educação é uma atividade privada, que acontece longe da família e do lugar de origem.
EDUCATRIX E como deveria ser?
Ailton Krenak O lugar privilegiado para uma pessoa se constituir é o laço doméstico, o lugar onde nasceu, foi acolhida, onde constitui parte de uma família, de uma comunidade. O núcleo mais simples disso que chamamos de comunidade é uma casa, um lar. Não estou falando de lar como uma ideia burguesa, urbana, mas como um lugar de afeto, em que se constituem relações familiares. Esse é o primeiro estágio de formação da pessoa. O problema é que a ideia de educação foi capturada de uma maneira populista pela sociedade industrial e foi divorciando a pessoa das relações de afeto e transformando-a em um sujeito demandado pela sociedade, já previsível, configurado para atuar em uma sociedade de produção. Alguns países têm legislações que proíbem a família de tomar a iniciativa de conduzir a formação da criança sem a colaboração de especialistas. A educação virou uma especialidade, e isso leva à renúncia a todos os outros campos do conhecimento. O despertar de outros saberes foi obliterado. É um reducionismo das possibilidades de afeto e de desenvolvimento interior de uma pessoa.
EDUCATRIX Durante a pandemia, acompanhamos episódios com pessoas em aglomerações ou mesmo furando filas de vacinação. Estamos perdendo o sentido de humanidade?
Ailton Krenak Talvez seja uma revelação, que chega como se fosse um susto. Nunca fomos uma humanidade. No meu livro Ideias para adiar o fim do mundo, faço uma crítica à razão ocidental, dizendo que a humanidade é uma projeção, um desejo, que talvez a gente tenha cultivado da melhor maneira possível, com o melhor propósito. Ao longo de uma grande parte da nossa história, na solidão, no deserto, na dificuldade, nós ansiamos por uma unidade, por integrarmos alguma coisa boa, mas a humanidade nunca existiu como experiência objetiva real. Depois do Cristianismo, a ideia de humanidade passou a ser uma religião, um dogma, não um projeto. Ou seja, quem não faz parte dessa humanidade é ruim da cabeça ou doente do pé. Criticar esse consenso é ficar de fora. O historiador Yuval Harari diz, em sua obra: “o Homo sapiens é um assassino, que matou outras espécies que podiam andar como ele”. Muitos cientistas já concluíram que existe uma tendência no ser humano de competir com outras espécies a ponto de subjugar a vida dos outros a favor de si mesmo. Esse gene egoísta foi vencedor até outro dia, mas agora começou a entrar em colapso. Esse vírus que está por aí deixa as borboletas voarem, as trepadeiras subirem nas plantas, que continuam a dar flores. Ele só tem um alvo: o tal do Homo sapiens.
EDUCATRIX Vivemos uma encruzilhada da espécie humana?
Ailton Krenak Como se a cobra desse a volta e agora mordesse o próprio rabo, como a serpente ouroboros… há muitas metáforas sobre isso, é claro, a maioria delas tristes. Apontam para uma desilusão com a nossa espécie. Fiquei surpreso outro dia lendo o trabalho de uma pesquisadora, nos Estados Unidos, que também se dedicou a esse estudo, e descobriu que não é uma verdade absoluta que o gene desta espécie sobrevivente seja ruim. O ser humano tem a capacidade de desenvolver empatia, de ser solidário, ser social, e desejar de alguma maneira a cooperação para a vida. Só que não é isso o que estimulamos. Há muito tempo, educação é competição.
EDUCATRIX Nossa educação estimula a competição entre os seres humanos?
Ailton Krenak Sim, a educação mais “bacana” do mundo forma as pessoas mais competitivas, os executivos, os vencedores. Eles saem dos melhores colégios, das melhores universidades. São fábricas de monstros. Continuamos a fazer o elogio do gene assassino, em vez de cultivar o lado bom das personalidades. Ao invés de animar tais personalidades pela horizontalidade nas relações, as escolas projetam sujeitos como mísseis, com mentalidade bélica. Aqueles que se tornam executivos jovens de grandes empresas podem ser excepcionais. Mas foram acelerados por uma experiência educativa que dá prêmio ao DNA assassino que o Homo sapiens carregou até aqui e alguns decidiram bombar. Produzimos monstros, elegemos monstros e perguntamos depois o que fazer. O período da pandemia deveria ser um período de desconstruir o que chamamos de educação até agora, inclusive as grandes linhas da pedagogia que estruturam o edifício da educação moderna. Deveríamos dar baixa, sem exceção.
Só descobrimos que estamos ameaçados como espécie após termos destruído metade das espécies de vida selvagem com quem compartilhamos o mundo até ontem”
Ailton Krenak
EDUCATRIX Há uma grande diversidade de etnias e culturas entre os povos indígenas. É possível elencar as características da educação desses povos com as quais deveríamos aprender?
Ailton Krenak Não existe uma educação indígena. Somos 150 etnias, 273 línguas, seria um exagero dizer que existe uma educação indígena. Mas se abríssemos uma licença-poética, nenhum desses povos instituiu um lugar chamado de escola. Todos entendem que a formação da pessoa antecede a formação do sujeito reivindicado pela sociedade. A formação é na comunidade, na família, no núcleo mais afetivo que ele vive. Os valores que a pessoa recebe são aqueles da sociedade em que nasce, dentro de casa. Não existe uma disputa, de quem vai vencer ou convencer quem, como se fosse um Flamengo x Botafogo. Então, essa gente que vive nua, sem camisa do Flamengo, nem do Botafogo, não ensina uma criança a torcer para nada, não forma pessoas esquizofrênicas. Nas escolas formamos pessoas esquizofrênicas e sujeitos sociais adaptados. Se alguém apresentar um manual de educação indígena, joga no lixo, é mentira. Não é possível generalizar. Cada corpus de conhecimento de um povo remete a uma cosmovisão. Nenhuma ontologia indígena supõe a certeza. A gente não tem certeza de nada. A escola quer ter certeza. O professor está cheio de certezas. O orientador pedagógico é o rei das certezas. As escolas podem estragar uma geração inteira achando que estão fazendo o certo.
EDUCATRIX Você tem falado sobre o conceito de bem-viver. Estamos nos afastando dessa ideia em vez de nos aproximar?
Ailton Krenak É importante lembrar que o conceito de bem-viver é diferente de bem-estar social. O bem-viver nasce de uma prática ancestral dos povos que viviam na Cordilheira dos Andes. Os Quechua e Aymara têm, em suas línguas, a expressão Sumak Kawsai, que nomeia um modo de estar na Terra, de estar no mundo. Esse modo tem a ver com a cosmovisão constituída pela vida das pessoas e de todos os outros seres que compartilham o ar, que bebem água e que pisam nessa terra com a gente. Temos de buscar outro paradigma. Não temos um ambiente para uma experiência de bem-viver; hoje, ele seria possível apenas em alguns lugares do mundo. Ia acontecer em condomínios. Se o bem-viver está limitado pelo tipo de troca e economia que existe ao redor, não existem condições para que seja implantado no mundo global, tomado por violência e disputa.
EDUCATRIX Como educar para o bem-viver?
Ailton Krenak Se olhamos as grandes cidades, como se vai imaginar o bem-viver? Todos estão armados até os dentes. Quando temos a invasão do Capitólio, uma reação ao movimento Vidas Negras Importam, estamos vendo a metástase desse tipo de sociedade global. Querer introduzir nesse mundo a educação para o bem-viver é questionável. Em uma escola em que trabalhei, eu perguntava: vocês estão preparando crianças para serem comidas por quem? Estamos vivendo um dilema do que se chama educação: estamos preparando crianças agora para qual mundo? Para um mundo que já envenenamos, predamos, botamos em rota de colisão, em que a temperatura está indo para as cucuias, e muitas das fontes e recursos, como água e energia, estão sendo exauridas? Nós preparamos as crianças dizendo: vamos viver bem, em paz, quando na prática estamos predando o planeta.
EDUCATRIX Você associa essas questões ao capitalismo e ao consumo. A desigualdade é o nosso maior desafio?
Ailton Krenak É mais fácil pensar no fim do mundo do que no fim do capitalismo. As pessoas mais simples estão agarradas à ideia do consumo, da mercadoria. É uma tristeza constatar isso. A própria ideia social do dinheiro foi transformada em algo tão miserável que, se não temos dinheiro, não somos nada. O que mais apavora as pessoas na Europa não é o trânsito dos migrantes: o problema é que quem está migrando é pobre. É uma fobia da pobreza. O mundo não tem problemas com gente rica circulando, atravessando fronteiras. As fronteiras são para cercar a pobreza. Como vamos discutir qualquer outra questão se não conseguimos dar conta de uma divisão primordial em que se tem muitos pobres e pouquíssimos ricos, com o poder de construir os muros? A educação não deveria ser mais um tijolo nessa construção, deveria ajudar a desmontá-los, inclusive aqueles que separam as crianças dos seus pais. Deveria haver uma política de renda mínima universal que permitisse que, nos seus sete primeiros anos, os pais tivessem como única obrigação cuidar das suas crianças, e só depois entregá-las para a sociedade.
PARA SABER MAIS
- h KRENAK, A. Caminhos
para a cultura do bem-viver.
Disponível em: culturadobemviver.org. Acesso em: 10 fev. 2021.