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Projetos de vida a favor da inclusão

Como a escola e a família podem contribuir para a criação de projetos de vida inclusivos para crianças e jovens com deficiência? 

Texto: Roberta Amendola

Desde 2018, com a publicação da Base Nacional Comum Curricular, as escolas de todo o país vêm conhecendo e implementando a área de Projeto de Vida (PV). Nas aulas desse componente, os alunos traçam metas de autodesenvolvimento (dimensão pessoal), atuação na sociedade (dimensão social) e construção de carreira (dimensão profissional) com base nos seus objetivos a curto, médio e longo prazos e buscam alcançá-los. 

Alunos com algum tipo de deficiência vivenciam processos formativos, sociais e inclusivos durante o período escolar que interferem na construção dos seus projetos de vida, e as escolas e a família podem ser agentes impulsionadores dessa trajetória. 

Do diagnóstico da deficiência à construção de um projeto de vida: do “luto” à luta 

Ao descobrir a gravidez, o primeiro pensamento dos pais é imaginar como serão os filhos e projetar futuros para eles. A criança cresce e faz escolhas que podem se alinhar ou não aos planos que foram idealizados para ela. 

Essa quebra de expectativas acontece na maioria das famílias. No caso das famílias atípicas, isso pode ocorrer com a detecção de uma deficiência no nascimento ou anos depois. Adna Maria Santos Cruz, diretora da Creche-Escola Berço do Saber, em Feira de Santana (BA), trabalha há mais de dez anos com educação inclusiva e já acompanhou diversas reações dos familiares. “Seja por superproteção, descrença na capacidade, falta de recursos ou de conhecimentos, algumas famílias desestimulam as crianças com deficiência e não oferecem a elas acompanhamento especializado multidisciplinar, como terapias e Atendimento Educacional Especializado (AEE)”. 

Por outro lado, ela relata que há também muitas famílias que, passado o período de luto pela quebra de expectativas, se engajam na luta por melhores condições de desenvolvimento para seus filhos e para outros atípicos. Érica Lemos é um desses casos: mãe de um jovem autista, fez da inclusão sua causa e sua profissão. Cursou especializações para conhecer os direitos, as terapias e as possibilidades para seu filho e hoje é gerente de AEE na Secretaria de Educação de Osasco (SP). Engajada, conseguiu que fosse aprovado um decreto-lei em seu município instituindo a Semana da Conscientização do Transtorno do Espectro Autista (TEA). 

Adna, Érica e tantos outros profissionais e familiares conseguiram ressignificar o “luto” pelas expectativas desconstruídas e transformá-lo em luta pela inclusão, (re)conhecendo e aceitando a identidade dos seus filhos/alunos. 

Das famílias à escola: diagnóstico, acolhimento e parceria  

No caso de crianças que já chegam à escola regular e/ou de AEE com o diagnóstico de uma deficiência, a instituição as acolhe, planeja e implementa um plano de desenvolvimento multidisciplinar alinhado ao planejamento pedagógico da turma. Em outros casos, são os próprios professores que observam as características das crianças e identificam defasagens no desenvolvimento esperado para a idade. Eles alertam os pais para que busquem atendimento médico especializado a fim de confirmar – ou não – a condição e chegar a um diagnóstico com base em análises biológicas e psicossociais.  

Seja por superproteção, descrença na capacidade, falta de recursos ou de conhecimentos, algumas famílias desestimulam as crianças com deficiência e não oferecem a elas acompanhamento especializado multidisciplinar, como terapias e Atendimento Educacional Especializado (AEE)

Adna Maria santos Cruz (BA)

Nos dois casos, é necessário que as escolas trabalhem com as famílias a aceitação e a revisão das expectativas. “A escola faz primeiro o acolhimento dos pais de crianças com deficiência, que sofrem, não sabem lidar; a escola educa os filhos e os pais ao mesmo tempo, porque é tudo novo para eles”, afirma Adna.  

Além dessas famílias, é fundamental educar também as demais famílias do colégio para a empatia, promovendo o respeito e a inclusão desde a primeira infância. Adna conta que na creche-escola em que trabalha havia um aluno com deficiência motora e cognitiva que utilizava um andador para se locomover. Nas tradicionais comemorações de São João, em vez de propor uma quadrilha, que seria inacessível a ele, as professoras escolheram uma música que apresentava a história de um trenzinho. Ele pôde participar de toda a apresentação com os colegas, levando alunos e famílias a reconhecerem que, sim, é possível ser inclusivo. 

O ingresso dos alunos em AEE está condicionado à matrícula no ensino regular na própria escola ou em outra. As escolas regulares públicas e privadas devem realizar a adaptação de espaços físicos para garantir a acessibilidade de todos os estudantes, além de formar o corpo docente e sensibilizar a comunidade escolar. 

Ana Luiza Lima Braga, coordenadora da Unidade de Educação Especializada José Álvares de Azevedo, em Belém (PA), que atende alunos com deficiência visual e baixa visão, explica como envolve as famílias desde o primeiro contato. “Eu acolho os alunos e as famílias e pergunto: como vocês veem essa criança daqui a 3, 5 e 10 anos? O que esperam que ela seja capaz de fazer? Vocês acreditam no potencial dela?”. Juntos, em parceria com o serviço de assistência social, identificam limites e potencialidades e constroem o projeto de vida que guiará o desenvolvimento do estudante. Esse PV se traduz no Plano de Atendimento Individualizado (PEI), que é a bússola para o desenvolvimento da autonomia, a educação integral e a inclusão, sendo revisto constantemente em função das necessidades e dos progressos. 

A partir do PEI, nessa AEE os alunos são encaminhados para um ou mais núcleos de atendimento especializado em Habilitação e Reabilitação Educacional (atividades motoras, cognitivas, sociais e da vida diária, incluindo o sistema braile); Educação e Ensino Estruturado (intervenção pedagógica e educação ao longo da vida); Habilidades Motoras e Potencial Físico (independência, uso de bengala e participação em esportes paralímpicos); Produção e Complementação Pedagógica (recursos específicos e adaptações de materiais didáticos); Tecnologia Assistiva e Informática Educativa (inclusão digital); Artes (criatividade). 

A instituição promove ainda formação pedagógica para professores e coordenadores, com uma equipe de especialistas em todos os componentes. Ao oferecer aprendizagens e vivências significativas para a vida prática dos estudantes, eles reconhecem e valorizam o papel da escola. Para a educadora Érica Lemos, “é essencial a construção de projetos de vida por alunos com deficiência a partir dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, para que eles vejam a escola como um meio para alcançarem seus objetivos. O PEI está diretamente relacionado ao PV, o que aumenta as possibilidades de o aluno construir relações sociais e ingressar no mundo do trabalho”. 

Érica pôde constatar isso com seu filho, hoje com 20 anos, que desde criança recebeu preparação para a vida diária e diversas terapias que fizeram com que evoluísse de nível 2 para nível 1 de suporte no TEA. Esse trabalho de PV também contou com um caderno de metas do Ensino Fundamental ao Ensino Médio, o que contribuiu para que ele se preparasse para a vida em uma perspectiva biopsicossocial e se inserisse no mercado laboral. Alunos que possuem um PEI e um PV a curto, médio e longo prazo têm maiores chances de se tornar adultos autônomos e realizados. 

A inclusão no projeto de vida dos alunos com deficiência 

Para alguns alunos, a inclusão e o combate ao preconceito se tornam bandeiras que se refletem nas dimensões pessoal, social e profissional do seu PV. Para outros, essas lutas são parte da sua história, mas elas não são vistas por eles como o seu propósito. 

A coordenadora Ana Luiza Lima Braga reitera a importância da escola na conscientização sobre o engajamento. “Parte do nosso trabalho é fazer com que as famílias e os próprios alunos vejam que eles fazem parte, sim, da sociedade, que conheçam os seus direitos e lutem por eles. E isso não se restringe a crianças e adolescentes. Muitos adultos com deficiências não são inseridos na sociedade, não tiveram projetos de vida, e sempre é tempo.”  

Não é preciso ter uma deficiência ou alguém próximo com alguma condição de saúde para se engajar nessa causa. “Há 29 anos, fiz da luta pela inclusão o meu PV e não me arrependo. Eu me ressignifico a cada pessoa com sua história. Não podemos desistir de nenhuma. Comprei a luta, luto junto, empodero as famílias e os alunos a pensar no projeto de vida de ser, de estar. Me pergunto: ‘Que educadora eu quero ser daqui a um tempo? Eu quero ser a educadora que acredita nas possibilidades do indivíduo!’”, afirma Ana. 

Seja na dimensão pessoal, social e/ou profissional, a inclusão deve fazer parte do projeto de vida dos alunos com deficiência, dos seus familiares, educadores e de toda a sociedade. 

Os pilares do projeto de vida de alunos com deficiência 

O primeiro passo para a construção do PV do aluno com deficiência é o reconhecimento da sua identidade e o respeito aos objetivos identificados por ele e seus familiares. Para ele, desenvolver autonomia em uma atividade cotidiana pode ser o equivalente a ser aprovado em um vestibular. Não cabem julgamentos sobre a grandeza dos objetivos ou o quão desafiadores eles são porque os parâmetros são relativos e pessoais. 

Desde os primeiros anos escolares, os docentes podem identificar os interesses e as habilidades dos alunos e contribuir para desenvolvê-los, favorecendo o processo de autoconhecimento e o fortalecimento da autoestima. Os interesses podem se tornar hobbies, ações de intervenção na sociedade ou até a base para a construção de uma carreira. 

Essa legitimação da identidade do aluno deve se pautar em quatro pilares (gardou, 2006, p. 39 apud meirelles et al., 2017): 

  • Reconhecimento: a validação, pelo outro, da sua existência e identidade; 
  • Autonomia: a validação da sua individualidade e das suas potencialidades; 
  • Direito: o reconhecimento da sua dignidade e do seu papel na sociedade; 
  • Dizer e agir: a inclusão social de forma plenamente autônoma e/ou assegurada por outros que possam traduzir em atos as suas intenções democráticas. 

O papel da escola na construção de PV de alunos com deficiência se pauta em dois eixos: nos saberes disciplinares (se preciso, adaptados) e nas vivências socioemocionais. Segundo Meirelles: “A escola precisaria construir, de um lado, uma aprendizagem significativa, autêntica, e por outro lado reforçar aqueles componentes psicológicos que sustentam o conhecimento e a percepção de si, o autorreconhecimento de interesses, coerentes com as próprias potencialidades e limites”. Assim, a escola cumprirá seu papel de formar indivíduos e cidadãos que, munidos com conhecimentos e repertório de si e de mundo, poderão identificar objetivos e persegui-los. 

Projetos de vida a favor da inclusão 

Ser o mediador na construção de PV a favor da inclusão é um desafio que os professores e os demais integrantes da comunidade escolar devem acolher com dedicação e respeito. Cada aluno é único em seus desejos, planos e potencialidades, independentemente da deficiência, e compará-los é uma atitude excludente, como afirma Mantoan. “A diferença entre é subjacente a todos esses entraves às mudanças propostas pela inclusão. Velada ou explicitamente, ao fazermos comparações, fixamos modelos, definimos classes e subclasses com base em atributos que não dão conta das pessoas por completo, excluindo-as por fugirem à média e/ou à norma estabelecida. […] Para que uma pedagogia da diferença seja exercida nas escolas, ela deverá acolher a diferença de todos os alunos. […] Há, portanto, muita diferença entre a diferenciação para excluir e para incluir”. 

É necessário formação, tempo e comprometimento para o trabalho de projeto de vida com alunos com deficiência – requisitos que, aliás, são essenciais para se trabalhar com educação para quaisquer alunos. 

A inclusão, assim como a construção de PV, só se concretiza no contato com o outro. É no coletivo que se reitera a individualidade, é na convivência que se forma o indivíduo. É pelo outro que se aprende, é para o outro que se ensina. É na pedagogia da diferença que o professor inclui e exerce o seu projeto de vida, formando alunos e contribuindo para uma sociedade mais justa.

Roberta Amendola é graduada em Letras e mestra em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em mercado editorial, computação aplicada à educação e projeto de vida. Consultora de inovação, editora e autora de obras didáticas, entre elas GPS – Guia de Protagonismo no Século XXI, pela Editora Moderna, aprovada no PNLD 2021. 

Para saber mais

  • MANTOAN, M. T. E. Inclusão escolar – O que é? Por quê? Como fazer? São Paulo: Summus, 2015. p. 84, 85. 
  • MEIRELLES, M. C. B.; DAINESE; R.; FRISO, V. A Educação Especial no contexto italiano: o projeto de vida, da escola à vida adulta. Revista Educação Especial, v. 30, n. 57, jan./abr. 2017, p. 189-202. 
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