Novo Ensino Médio: novos sentidos da escola e do conhecimento
Implantação da reforma na etapa média da Educação básica dá oportunidade de um novo campo de experiências aos alunos, que aprendem a fazer escolhas e a identificar seus próprios interesses.
texto Paulo de Camargo
Para todo o sistema educacional, a pandemia representou — para além de todo o impacto pedagógico, emocional e social — um baque na sustentabilidade do projeto e da escola, seja na esfera pública, seja na privada. Dentro do universo da educação particular, estima-se que, em todo o país, milhares de escolas tenham fechado, temporária ou definitivamente, especialmente aquelas de Educação Infantil, cujos pais optaram por interromper as matrículas. Mas, seja qual fosse o tamanho do desafio, o fato é que as instituições de ensino que ofertavam o Ensino Médio tiveram de lidar também com a transição para um novo modelo educacional — complexo, promissor e, principalmente, ainda desconhecido para quase todos. Afinal, a data limite estabelecida pelo Conselho Nacional de Educação para implementação do Novo Ensino Médio era o ano letivo de 2022.
Esse foi o caso da educadora Flaviana Rigolin. Gestora pedagógica do Colégio Modelo, de Curitiba (PR), Flaviana sofreu como todos o impacto da pandemia. Perdeu alunos na Educação Infantil, que agora volta a recuperar, e teve de dividir suas preocupações entre a gestão da escola durante o período do isolamento social ao mesmo tempo que se preparava para mudar o trabalho no Ensino Médio.
“Quando se começou a falar desse tema, em 2018, chamei os professores para conversar, e alguns ficaram muito assustados”, lembra. Teve até quem preferiu deixar as aulas pelo temor da mudança. Em 2019, foi tempo de estudar a legislação, com as novas resoluções dos conselhos de Educação, e começar a tomar as primeiras providências. Mas veio a pandemia, e tudo virou de cabeça para baixo. Nos anos de 2020 e 2021, Flaviana precisou, em suas próprias palavras, trocar o pneu com o carro andando. “Eu não sabia nem como começar a falar sobre o tema com os professores e os pais”, lembra. Mas, seguiu em frente: com milhões de ideias, decidiu colocar os pés no chão e não assustar ninguém. Desenhou, assim, um projeto coerente com a proposta pedagógica de sua escola. “Idealizei um Ensino Médio realmente próximo da minha escola, tive cuidado com a equipe, planejei”, conta.
Foi quando começou a conversar com os alunos que Flaviana percebeu que o susto não era só dela. Eles nunca tinham sido preparados para fazer escolhas — e esse é, ainda hoje, um dos principais argumentos dos críticos da reforma. “Como exigir deles uma resposta sobre o que gostariam de estudar?”, perguntou-se. Por isso, no desenho do Novo Ensino Médio, a educadora decidiu criar tempos de experimentação para todos — inclusive para os educadores. “Criei um ‘menu degustação’”, explica a diretora. Ainda no final de 2020, convocou os professores mais preparados para a mudança para começar silenciosamente um projeto piloto, introduzindo algumas eletivas. Deu início também ao trabalho com Projeto de Vida.
Articulando o movimento com o material pedagógico utilizado (UNO Educação), criou trilhas e trabalhou em torno de eixos estruturantes propostos na BNCC, em torno do qual se articulavam os componentes. Passou a introduzir temas como Cultura das Telas, Saúde e Educação Financeira. O exercício que já vinha sendo feito com o uso de metodologias ativas contribuiu com sua jornada e proporcionou uma nova experiência de aprendizagem para os alunos.
Outro trabalho importante realizado pela escola foi a comunicação com os alunos, desde os Anos Finais do Ensino Fundamental. Com diálogos e materiais informativos desenvolvidos em vídeo, os educadores explicaram o projeto e discutiram com eles sobre a maturidade das escolhas. “Mostramos que precisam estar preparados para a vida, e isso significa escolher”, diz a diretora.
A iniciativa foi um sucesso. Em outubro de 2021, as vagas oferecidas no Ensino Médio já estavam preenchidas. “Com muito medo de estar errando, fomos em frente”, conta Flaviana, agora aliviada. “Estávamos amargurados no ano passado, agora olhamos para o futuro muito animados”, finaliza.
Crescendo na crise
Durante a pandemia, a Reforma do Ensino Médio turbinou o projeto de algumas escolas, que cresceram de forma, no mínimo, inesperada. Pelos contextos locais, pela qualidade do trabalho acadêmico realizado na pandemia e, em especial, pela proposta de ensino, o ano de 2022 chegou pleno de realizações para algumas escolas, como foi o caso do Colégio Espaço Verde, em Volta Redonda (RJ).
Entre outras proezas, além de colocar em pé o Ensino Fundamental II, durante o sofrido ano de 2020, a escola ainda abriu de uma vez duas séries de Ensino Médio, em 2021, introduzindo o último ano do ciclo em 2022. Não apenas lançou uma etapa nova sem ter ainda alunos formados na fase anterior, como iniciou o projeto já dentro do modelo do Novo Ensino Médio. Haja apetite para desafios.
Essa escola, aos 30 anos de existência, soube sentir a direção dos ventos e foi em frente. Seus alunos vivem agora uma nova experiência educativa, dentro do novo formato do Ensino Médio, com itinerários formativos e um modo diferente de organizar o currículo, a partir dos interesses dos jovens.
Segundo a diretora Cecília Coli Castilho Damaceno Matos, a primeira parte da expansão já estava planejada quando chegou a pandemia. Até então, a escola atendia a Educação Infantil e, em 2019, tinha inaugurado os Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Se a pandemia trouxe o reflexo de fugir ou enfrentar, a opção da escola foi de seguir em frente.
No ano de 2020, já em plena fase da educação remota, a escola decidiu estender a oferta do Fundamental até o 8o ano. Em 2021, com a formação da turma do 9o ano, as próprias famílias se encarregaram de fazer pressão para garantir a continuidade do projeto bem-sucedido. Era a vez de encarar o Ensino Médio. Só que, já dentro do prazo final de implantação definida para o Novo Ensino Médio, a decisão não era simplesmente abrir a etapa subsequente, mas entender e colocar em pé uma organização curricular que vem arrepiando os cabelos de educadores no país inteiro.
O Colégio Espaço Verde lançou mão, dessa forma, da experiência bem-sucedida dos materiais do Sistema Farias Brito de Ensino (SFB)— já organizado dentro da lógica do Ensino Médio reformado. Em 2021, todos os alunos já cursavam o componente curricular Projeto de Vida, uma das grandes novidades da atual Base Nacional Comum Curricular. Haviam iniciado também a experiência com disciplinas eletivas. Em 2022, foi a vez de deslanchar o projeto como um todo, com novas eletivas e itinerários de aprofundamento.
Dessa forma, os alunos que começaram o ano tinham como opção novas áreas, como Jogos Digitais, Inteligência Artificial e Astronomia, oferecidos pelo Sistema Farias Brito de Ensino, e duas outras propostas pela própria Escola — Mecanismos de Ação e Pesquisa da Farmacologia e Reflexões e Atuação do Direito.
Com 700 alunos, a escola viveu uma nova dinâmica de atendimento educacional, com novas faixas etárias, a expansão das etapas e uma nova abordagem pedagógica trazida pela Reforma do Ensino Médio. No primeiro ano, todos cursam todos os itinerários, e farão escolhas específicas nos anos seguintes. “Os alunos estão muito felizes com a possibilidade de explorar os diferentes campos”, diz Cecília, que ficou feliz ao ouvir, logo no início das aulas, no restaurante da escola, o entusiasmo com que os jovens trocavam suas experiências.
UX em parceria
No desenvolvimento de projetos de itinerários diferenciados, muitas escolas também aproveitaram da liberdade assegurada pela lei e pelas diretrizes do Novo Ensino Médio, abrindo uma temporada de parcerias inovadoras. As parcerias garantem aos alunos uma experiência radicalmente diferente daquela vivida na escola regular.
Esse foi o caso do Instituto Inteli, em São Paulo. O Inteli é um instituição de ensino superior lançada em 2021, com uma proposta ousada — formar os futuros líderes das empresas de tecnologia. Com cursos de Engenharia da Computação, Engenharia de Software, Ciência da Computação e Sistemas de Informação, o Inteli vem sendo desenhado há dois anos, e começou a funcionar em 2022, dentro da área do Instituto de Pesquisas Tecnológicas da Universidade de São Paulo (USP).
Para aumentar a interação com a Educação Básica, o Instituto Inteli estabeleceu parceria com colégios paulistas, entre eles Pentágono, Oswald de Andrade e Piaget, para a oferta de um itinerário formativo no campo da tecnologia. Com base na eletiva Olá, Mundo! Introdução à Lógica Computacional por meio do Desenvolvimento de um Jogo Digital, os alunos do Ensino Médio aprenderão, sim, sobre programação, mas principalmente conhecerão alguns aspectos da experiência iniciada por mais de uma centena de jovens universitários que começaram, neste ano, a estudar na instituição.
Segundo Maíra Habimorad, CEO do Inteli, a metodologia do Instituto partiu da necessidade de identificar potenciais alunos. O primeiro passo foi realizar uma extensa pesquisa de campo. Depois, foram realizados pilotos a partir da metodologia que vinha sendo desenvolvida.
O projeto pedagógico traz elementos da metodologia ágil, articula todo o trabalho em torno de entregas compartilhadas, com um currículo organizado em torno de competências e com uma proposta baseada em projetos e resolução de problemas. Esqueça o predomínio de aulas quadradas e longas listas de textos, como nos cursos superiores de tecnologia convencionais. A aula instrucional existe, mas a energia principal é canalizada para o protagonismo dos alunos, que se envolvem em projetos reais. Ao mesmo tempo, todos desenvolvem competências de liderança e são expostos a discussões éticas — essenciais para quem vai desenvolver os algoritmos que ditarão o rito do futuro.
O mesmo princípio vale para o próprio desenho global do Instituto Inteli. Hoje, os alunos testam as plataformas tecnológicas utilizadas e dão feedbacks. “Eles participam lado a lado com nosso time de tecnologia e UX na construção de nossas soluções”, explica Maíra, que também é sócia da Cia. dos Talentos, a maior empresa de seleção e treinamento de trainees da América Latina.
Outra forma de construir a experiência dos usuários, ou seja, dos alunos, é a realização mensal do que chama de town halls, encontros em que todos participam e trazem seu ponto de vista do que podemos melhorar e fazer de novo e diferente. “Nosso comitê de ética é composto também de alunos, e os representantes de turma lideram ações em parceria com nosso time”, conta a CEO. Segundo ela, o coração do projeto é ver o aluno como parte de uma comunidade de aprendizagem. “Nossa relação com eles é cada vez mais horizontal”, diz.
Contudo, Maíra também faz um alerta importante. Há um risco possível em usar a lógica de experiência do usuário para a educação. “Não podemos colocá-lo no lugar de cliente. Aluno não é cliente. É parte da construção e construir oferece direitos, mas também deveres”, explica. Para ela, é importante saber que o aluno está sempre no centro do que o Instituto pensa, mas não de forma passiva, sendo “servido”, e, sim, de maneira participativa, convidado a contribuir e a atuar para que o Inteli seja um lugar de todos.
Mal as aulas começaram, e já surgem bons exemplos desse posicionamento pedagógico. Os alunos queriam que o café do Inteli vendesse biscoitos e salgadinhos, mas a parceria estabelecida com o Instituto e a empresa de alimentação traz o foco na alimentação saudável. Assim, junto com os jovens, o Instituto desenvolveu o conceito de um Honest Bar. “Colocamos os produtos que eles indicaram à venda, a preço de custo e autorregulado. Ninguém fiscaliza. Hoje eles são corresponsáveis. Participaram do conceito, e fazer o modelo funcionar depende deles”, conta Maíra.
Como tudo é dinâmico, o processo de gestão do projeto continua. Logo em seguida, os alunos pediram permissão para que pudessem vender seus próprios produtos no Honest Bar. A resposta da instituição foi: vamos pensar juntos. “Eu não vou dizer sim e nem não. Propus aos alunos que pensássemos e ainda não conseguimos concluir a questão com os representantes”, explica. Já os representantes levaram aos demais alunos a posição, e todos aguardarão o desfecho. “Para a gestão da escola, dizer sim ou não é fácil. Difícil é construir uma decisão coletiva”, conclui Maíra.