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Implementação do Novo Ensino Médio

Elaborar currículos que contemplem o projeto de vida do estudante ainda é o maior desafio das escolas e redes de ensino.

Texto Lara Silbiger

Aos poucos, o Novo Ensino Médio vai ganhando forma nas redes de ensino e escolas de todo o país. O desafio ainda é grande e nem todas caminham no mesmo ritmo. Algumas já ostentam iniciativas bem-sucedidas. Outras acabam de estrear projetos-piloto. E muitas ainda se encontram em pleno processo de ajuste na estrutura e revisão curricular.

Em comum, todas buscam adaptar-se às recentes alterações na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), bem como às Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM) e Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Três grandes frentes pautam as mudanças. Uma delas é o desenvolvimento do protagonismo do aluno. “O Novo Ensino Médio coloca o jovem no centro da vida escolar, de modo a promover uma aprendizagem com maior profundidade e que estimule o seu desenvolvimento integral por meio do incentivo ao protagonismo, à autonomia e à responsabilidade do estudante por suas escolhas e seu futuro”, explica o MEC no Guia de Implementação do Novo Ensino Médio. 

Em boa medida, trata-se de uma quebra de paradigma. “É uma inversão de papéis na medida em que o aluno é quem assume as rédeas da sua aprendizagem e constrói o próprio itinerário formativo, com base no projeto de vida que tem para si”, afirma Marcelo Pena, diretor de ensino da Organização Educacional Farias Brito, da rede privada do Ceará. Ele ainda ressalta o dever das escolas de preparar os jovens para fazer escolhas autênticas e conscientes. “Cabe a nós proporcionarmos atividades que promovam o autoconhecimento, o contato com as várias realidades profissionais e o aprender a fazer boas escolhas.”

As outras duas frentes de ação são a valorização da aprendizagem, com o devido reflexo sobre a jornada de estudos, e a garantia dos direitos de aprendizagem referenciados pela BNCC a todos os estudantes do país. Na prática, porém, tirar tudo isso do papel é uma tarefa para lá de complexa. “É preciso arquitetar não só o novo lugar que se oferece ao aluno como a flexibilização curricular, a ampliação da carga horária e as novas abordagens metodológicas e práticas pedagógicas que o Novo Ensino Médio demanda”, afirma Simone André, consultora em Educação e membro do Movimento Nacional pela Base.

Além disso, as redes de ensino e escolas precisam (re)construir seus currículos para garantir que forma e conteúdo caminhem juntos em busca de viabilidade, alinhamento com as bases legais e atratividade aos olhos do estudante. “O mais desafiador é pensar em formas de trazer o projeto de vida do jovem para dentro de um currículo que, de fato, conecte-se aos anseios dele para a vida pessoal, profissional e cidadã”, garante Simone.

Diante de tantas reflexões e ajustes necessários – incluindo normativos –, a legislação garantiu um período para que as escolas pudessem se adequar progressivamente à nova realidade, pesquisar boas práticas ao redor do mundo e conhecer os casos de sucesso que já existem no Brasil. 

Expansão da carga horária

As instituições de ensino de todo o Brasil têm até o dia 2 de março de 2022 para implementar a jornada mínima de 1.000 horas anuais – o equivalente a 3.000 horas no ciclo completo do Ensino Médio. A partir dessa data, a meta é subir progressivamente para 1.400 horas por ano.   

Quem ainda não deu os primeiros passos nessa direção precisa se apressar. A lista de tarefas inclui analisar as limitações da escola – infraestrutura, pessoal e financeira –, dimensionar os esforços e gastos extras e definir um cronograma de ampliação da jornada. “Na rede pública, por exemplo, aumentar a carga para sete a oito horas diárias implica um aumento de 60% nos custos em relação ao período regular”, alerta Simone André. Ainda assim, a consultora garante que o investimento vale a pena. “É consenso que quatro horas por dia já não são suficientes. Se mal dão para fazer a formação geral, quem dirá para flexibilizar o currículo. O tempo é fator decisivo para se trabalhar projetos de vida”, complementa.

Prova disso são os resultados colhidos em Pernambuco, que chegou a carregar o título de estado vice-campeão em evasão escolar no Ensino Médio, com 24% de taxa de abandono em 2007. De lá para cá, a rede estadual investiu na ampliação da jornada para tempo integral – das 760 escolas, 412 têm carga de 45 horas semanais – e na educação interdimensional, integrando protagonismo, projeto de vida, desenvolvimento cognitivo e as competências socioemocionais que hoje estão na BNCC. 

Em 2015, o estado alcançou o topo do ranking do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) e, dois anos depois, foi destaque nacional por apresentar a menor desigualdade de aprendizagem entre estudantes de diferentes níveis socioeconômicos. “Atualmente, a rede caminha rumo à universalização, com expansão do tempo e da nova visão de currículo para o Ensino Médio”, comenta Simone.

Embora a progressividade no tempo escolar seja tendência, o ensino em tempo integral não será a única realidade no país. As escolas de tempo parcial – cujas jornadas terão cinco horas diárias ou uma carga maior em apenas alguns dias da semana – continuarão existindo para atender aos mais variados contextos e rotinas dos estudantes. 

O mais desafiador é pensar em formas de trazer o projeto de vida do jovem para dentro de um currículo que, de fato, se conecte com os anseios dele para a vida pessoal, profissional
e cidadã”. 

Simone André

A legislação também contempla a possibilidade de as instituições de ensino oferecerem até 20% da carga horária do Ensino Médio regular por meio de atividades a distância – desde que sempre acompanhadas e/ou coordenadas pela escola onde o aluno está matriculado. No caso do Ensino Médio noturno, o percentual máximo é de 30%. 

De acordo com o Guia de Implementação do Novo Ensino Médio, a modalidade a distância pode ser uma boa alternativa tanto para diversificar itinerários formativos em escolas isoladas geograficamente quanto em situações que exijam professores especializados em determinados temas. 

Segundo Marcelo Pena, “a possibilidade de uso da educação a distância é uma oportunidade para as escolas do Sistema Farias Brito, que já recebem material didático por meio da plataforma FB on-line, podendo aprofundar conteúdos com videoaulas. É a incorporação das tecnologias para real apoio do processo de aprendizagem, por meio da implantação da BNCC.”

Uma vez por mês, grupos de 1o e 2o anos do Ensino Médio do Colégio Farias Brito, no Ceará, frequentam o Instituto da Primeira Infância (Iprede) para assistir a duas horas de aulas teóricas e mais duas horas práticas ministradas por médicos, enfermeiros, psicólogos, nutricionistas, dentistas e gastrônomos da instituição. A iniciativa, fruto de um convênio firmado em 2017, destina-se aos estudantes que pretendem seguir a carreira de Medicina.

O projeto tem duração de dois anos. No primeiro, os alunos têm aulas preparatórias de anatomia humana e também módulos sobre a história da Medicina e seus precursores, o desenvolvimento da saúde no Brasil a partir da criação do Sistema Único de Saúde (SUS) e a relação saúde-doença-paciente. No ano seguinte, as disciplinas se voltam para os cuidados básicos com o paciente, estudos dos sinais vitais e práticas de Educação em Saúde para as mães e crianças assistidas pelo Iprede. “O objetivo é aproximar os alunos do cuidado humanizado em Saúde e ajudá-los a desenvolver a empatia”, revela Marcelo Pena, diretor de ensino do Farias Brito. 

(Re)construção do currículo

A BNCC está organizada por áreas do conhecimento, que integram dois ou mais componentes curriculares (disciplinas) do currículo. São elas: Linguagens e suas Tecnologias, que reúne Arte, Educação Física, Língua Inglesa e Língua Portuguesa; Matemática; Ciências da Natureza, com Biologia, Física e Química; e Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, que contempla História, Geografia, Sociologia e Filosofia.

Visando a uma organização curricular mais flexível, a Base determina que as competências e os conhecimentos considerados essenciais sejam oferecidos na parte comum do currículo. Esta dispõe de 1.800 horas e deve abranger as quatro áreas do conhecimento, bem como todos os componentes curriculares do Ensino Médio. O tempo restante será destinado ao aprofundamento acadêmico do aluno, que poderá escolher uma ou mais áreas do conhecimento ou cursos técnicos (formação técnica e profissional) para trilhar seu itinerário formativo. 

Antes mesmo de a Lei n. 13.415/17 ser sancionada, os alunos do Colégio Farias Brito já podiam optar por alguns itinerários. Além da trilha voltada à área da Saúde, existem as de preparação para as Engenharias e para as Olimpíadas do Conhecimento. Esta última inclui aulas teóricas, laboratório de Astronomia e oficinas de Informática Educacional e Robótica. “Em um ambiente maker, os alunos criam placas eletrônicas de circuito impresso, constroem chassis e programam seus robôs com vários sensores. Dessa forma, assuntos antes acessíveis apenas no final de um curso de graduação tornam-se agora palpáveis no Ensino Médio”, afirma Israel Dourado, professor de Robótica Educacional. 

A definição de como atender às orientações da BNCC fica a critérios das próprias escolas e redes de ensino, a quem cabe revisar seus respectivos currículos, considerar as realidades e necessidades locais. Devem prever também o alinhamento do material didático às novas diretrizes, bem como da metodologia de ensino, práticas pedagógicas, preparação dos professores e formas de avaliação. “Não se trata de um movimento simples em um país onde as secretarias estaduais não tinham a tradição de desenhar currículo. Repensá-lo, em um novo formato, é o que todo mundo está fazendo agora”, explica Simone. 

O regime de colaboração foi o método adotado por todas as secretarias estaduais e do Distrito Federal para construir os currículos e a arquitetura do Novo Ensino Médio, com o apoio de equipes do MEC e do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed). Os primeiros encontros aconteceram em junho e setembro do ano passado, com a participação de cinco representantes por estado – entre eles, responsáveis pelo Ensino Médio nas secretarias, coordenadores de Educação Profissional, articuladores de itinerários e coordenadores pedagógicos de Educação em Tempo Integral.

Ainda não se chegou a uma versão final de referência curricular, o que tem impactado no cronograma que o MEC havia divulgado em dezembro de 2018. “Os currículos deverão estar estruturados até junho de 2019. Entre julho e setembro, haverá consultas públicas regionais nos estados. Os novos documentos deverão ser analisados e aprovados pelos conselhos estaduais de educação entre outubro e dezembro, para serem aplicados a partir do início do ano letivo de 2020”, anunciou o órgão, em nota oficial na época.  

Em relação à formação de professores, uma boa notícia chegou em 20 de dezembro de 2019, com a publicação da Resolução CNE/CP n. 2, que apresenta as Diretrizes Curriculares Nacionais e Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica, segundo as quais os currículos dos cursos da formação de docentes devem adotar a BNCC da Educação Básica como referência. “Trata-se apenas de um primeiro passo, mas já é um alinhamento vital”, comemora Simone, que também é consultora do Movimento Profissão Docente. 

A próxima etapa é viabilizar a prática. “Agora o desafio dos estados é orquestrar uma formação em serviço e em escala.” Segundo ela, a mentoria e a formação mais conectada com o cotidiano do professor são a chave para o sucesso, a exemplo das experiências de Finlândia, Inglaterra, Austrália, Portugal e Coreia.

Avanços independentes

Apesar de as secretarias estaduais ainda não disporem de um documento de referência curricular, algumas iniciativas pontuais já contribuem para o avanço da adaptação dos currículos em algumas redes públicas e escolas privadas. Levam vantagem aquelas que seguem a agenda internacional de temas como cidadania global, sustentabilidade, competências socioemocionais e tendências de inovação na Educação e dialogam com as demandas da comunidade escolar.

Na Secretaria de Educação da Bahia, o projeto “Escuta Inspiracional” foi a estratégia adotada para conhecer melhor os anseios de estudantes, professores e comunidade escolar. Ao todo, foram convidadas 900 pessoas – entre alunos, docentes, funcionários, gestores e famílias – para participar de rodas de conversa sobre o ambiente escolar, as práticas curriculares, os sentidos da escola para os jovens, a aprendizagem além do ambiente escolar, entre outros temas. Os encontros, com 1h30 de duração e mínima intervenção dos mediadores, aconteceram em dez Núcleos Territoriais do estado. Os resultados da pesquisa qualitativa contribuem agora para a construção do novo currículo. 

Na dianteira da implementação da nova arquitetura, também estão as escolas que já acompanhavam as discussões em torno da BNCC do Ensino Médio mesmo antes de sua homologação.

Escolas e redes têm autonomia para atender às orientações da base em relação a currículos, metodologias de ensino, práticas pedagógicas, formação de professores e formas de avaliação.

“Desde 2009, quando surgiu a Matriz de Referência do Novo Enem, investimos na formação dos professores com vistas à apropriação do currículo voltado para competências e habilidades”, conta Marcelo Pena, do Farias Brito. “O que fizemos agora foi agregar também as diretrizes da BNCC, de modo que eles se apropriem das habilidades e competências específicas das áreas do conhecimento.” 

Nas salas de aula, porém, as novidades não serão sentidas de forma drástica. “O fato de a Base estruturar o Ensino Médio por áreas do conhecimento não exclui necessariamente o trabalho das disciplinas tradicionais. É possível intensificar as relações entre elas e preservar suas especificidades”, garante o diretor. 

Para este ano letivo, a organização educacional ainda reserva o lançamento do seu próprio material didático para o Ensino Médio, atualizado em consonância com a Base e composto de um conjunto de livros elaborados por professores da instituição e autores da Moderna. Os primeiros passos do projeto remontam a 2016, quando as duas marcas criaram um sistema de ensino e uniram forças para contemplar as demandas da BNCC. No ano passado, já foi publicado o material didático do Ensino Fundamental 1 e, em 2020, sairá também o da Educação Infantil. 

Desenvolvimento de competências para o século XXI

O currículo alinhado com os anseios dos estudantes, as práticas sociais e o mundo do trabalho é uma exigência do Novo Ensino. “No entanto, muitas instituições ainda esbarram no ensino conteudista e na expectativa dos pais, que almejam para o filho o mesmo modelo de Educação que eles tiveram”, comenta Simone André, especialista em formação integral.  

Nesse processo de adaptação, ela destaca que o desafio – e também a melhor saída – é integrar o projeto de vida como componente curricular e ir além das aulas convencionais nos itinerários formativos. “É função da parte flexível do currículo desenvolver as competências para o século XXI, como comunicação, colaboração, criatividade, pensamento crítico e resolução de problemas.” Trata-se de capacidades que transcendem as expectativas de aprendizado relacionadas a conteúdos clássicos e que devem estar presentes nas rotinas.   

Quando questionada sobre o caráter inovador de um currículo voltado para o desenvolvimento socioemocional, a consultora é taxativa. “Não se trata mais de ser ou não inovador. É uma questão de ser contemporâneo e investir em competências que fazem a diferença no mundo.”

De acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), existe ainda um outro grupo de competências que envolvem as capacidades de atingir objetivos – por exemplo, perseverança, organização e entusiasmo –, trabalhar com os outros – como cordialidade, respeito e cuidado – e gerir as emoções – tais como autoconhecimento, otimismo e confiança. “Para desenvolvê-las, entretanto, é fundamental que haja um espaço de experiências e simulação da realidade”, sentencia Simone.

Incubadoras, núcleos de estudo ou de criação artística, oficinas, laboratórios, clubes e observatórios são algumas das alternativas que o Guia de Implementação do Novo Ensino Médio recomenda para compor o conjunto de unidades curriculares de um itinerário. Este, por sua vez, deve estar ancorado em pelo menos um dos quatro eixos apontados nos Referenciais para a Elaboração dos Itinerários Formativos. São eles: investigação científica, processos criativos, mediação e intervenção sociocultural e empreendedorismo.

Nesse contexto, uma iniciativa que já está em curso desde 2018 é o “Acelera FB”, realizado pelo Colégio Farias Brito. O objetivo é acelerar o processo de criação de novos negócios e intervenção na realidade, com o auxílio de ferramentas de design thinking, mentorias, trabalho em equipe e encontros no centro de ideias, empreendedorismo e inovação. “Dessa forma, os alunos do Ensino Médio tiram suas ideias do papel enquanto vivenciam a cultura digital e desenvolvem o pensamento científico, a criticidade, a empatia e a cooperação”, conta Marcelo, do Farias Brito. 

O diretor ainda destaca a resiliência para aprender a reaprender como uma competência-chave para os jovens. “O futuro do mercado de trabalho ainda é uma incógnita. Apenas se sabe que será completamente diferente do que é hoje, com a inteligência artificial e a robótica mudando praticamente todas as profissões”, afirma Marcelo, que relembra uma reflexão do historiador e filósofo israelense Yuval Harari. “Muitos trabalhos vão desaparecer, e outros emergirão. Para preencher as vagas, será preciso recapacitar as pessoas, que terão de se reinventar não apenas uma vez na vida – mas talvez várias, a cada década”, diz Harari, autor das obras Sapiens, Homo Deus e 21 Lições para o Século 21

Por aqui, o futuro já chegou, desafiando redes, escolas, gestores, professores e os próprios alunos a se reinventar para receber o Novo Ensino Médio e inaugurar uma nova era para esta etapa da Educação Básica no país.

 

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