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Currículo sob medida

Escolha de itinerários formativos desafia maturidade dos alunos no novo Ensino Médio.

Por Lara Silbiger

Encurtar as distâncias entre os interesses do aluno, a construção do seu projeto de vida e o que se aprende na escola é a grande promessa do Novo Ensino Médio. Nesse sentido, a principal novidade que a Medida Provisória 746/2016 traz é a autonomia atribuída ao adolescente para que ele mesmo escolha um campo do saber para se aprofundar.

A proposta, que evidencia o protagonismo juvenil, carrega consigo o desafio de tomar as rédeas da própria vida. A primeira prova consiste em exercer o poder de escolha diante de cinco áreas do conhecimento – Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza, Ciências Humanas ou Formação Técnica e Profissional. O aluno precisa eleger apenas uma delas para traçar seu itinerário formativo, cujo conjunto de disciplinas responderá por 40% da carga horária total do curso.

A chance de enveredar pela área de seu interesse salta aos olhos de Eduardo Ismael, 13 anos, do 9o ano do Colégio Magno, em São Paulo. “É uma oportunidade de terminar o Ensino Médio mais bem preparado para o mercado em que vou atuar”, afirma. Ele já se decidiu pelo campo das Ciências da Natureza, embora ainda esteja em dúvida entre as carreiras de Biotecnologia e Medicina, com especialização em Oncologia. “Minha grade ideal terá Física, Química e bastante Biologia. Sem faltar Literatura e História”, conta. As escolhas do estudante se inspiram na figura do pai, representante de fármacos para pacientes com câncer.

É uma oportunidade de terminar o Ensino Médio mais bem preparado para o mercado em que vou atuar. Minha grade ideal terá Física, Química e bastante Biologia. Sem faltar Literatura e História”

Eduardo Ismael, 13 anos, no 9o ano do Colégio Magno.

Segundo pesquisa Datafolha, a possibilidade de traçar o próprio itinerário formativo agrada 58% dos estudantes e 40% dos pais, que a consideram ótima ou boa. A simpatia pela medida, porém, não é unânime. Entre os pais, 14% a avaliam como regular e 43%, ruim ou péssima. Já entre os jovens, 20% afirmam que ela é regular e outros 21%, ruim ou péssima. A enquete ouviu 805 alunos de 13 a 19 anos e 408 pais, entre os dias 25 e 30 de novembro de 2016, na capital paulista.

No coro dos que desaprovam a proposta, está Mayara Bortolucci, 17 anos. “Ter que decidir, cada vez mais cedo, o que queremos estudar torna a escolha ainda mais árdua”, afirma a estudante do 3o ano do Ensino Médio do Colégio Magno. Ela vai seguir carreira em Exatas e, apesar da incerteza quanto à futura profissão, garante que hoje se sente mais segura do que quando ingressou no Ensino Médio. “Em 2015, eu gostava de tudo um pouco, o que dificultaria optar por uma área do conhecimento ou outra. Se tivesse que fazê-lo, teria sido um chute”, explica Mayara.

Na encruzilhada da tomada de decisão, todos os holofotes se direcionam para o processo de escolha. “Ele não se centraliza num único momento da vida, nem se dá do dia para a noite”, afirma Marlene Isepi, orientadora pedagógico-educacional do Ensino Médio da Escola de Aplicação da USP. Para ela, “mais que um ‘x’ num formulário”, a opção do estudante deve refletir seus gostos, habilidades, competências e perspectivas do mercado de trabalho.

Mesmo seguindo à risca as recomendações, o estudante não está imune a dúvidas. “Não somos estimulados a pensar sobre nós mesmos”, lamenta Maíra Habimorad, presidente da Cia. de Talentos. Segundo ela, isso é resultado da falta de incentivo e de ferramentas para o aluno se conhecer, reconhecer o que faz bem e identificar pelo que é reconhecido. “Diante dessa realidade, como podemos exigir que o jovem faça escolhas pautadas no autoconhecimento e movidas por um projeto de vida?”, questiona.

Outro fator a se considerar é a maturidade do estudante para tomar decisões conscientes. Não raro, a influência dos amigos, o vínculo com um professor, uma conversa recente e o rótulo que determinada disciplina carrega se sobrepõem a fatores como interesses próprios, habilidades, competências, sonhos e projetos pessoais.

Ao mesmo tempo em que a autonomia alça o jovem ao status de protagonista de suas escolhas, também cresce a responsabilidade sobre elas. “Uma decisão precoce equivale a jogá-lo para os leões”, pondera Marlene. “Quando se exige a escolha de um itinerário formativo no final do Fundamental – com impacto sobre todo o Ensino Médio e até sobre a vida profissional -, aumentam as chances de ocorrer uma mudança de rota no futuro”, afirma ela, que faz menção às altas taxas de desistência inclusive no Ensino Superior.

No entanto, visto sob outro ângulo, o ato de escolher é também um recurso de aprendizado. “As escolhas fazem parte da formação da juventude. Se responsabilizar por elas, se arrepender, voltar atrás e fazer de novo não é perder tempo. Ao contrário, é provocar situações que ampliem a autonomia, a trajetória de vida e o repertório do aluno”, destaca Priscila Cruz, presidente-executiva do Todos pela Educação.

Interesses refletem escolhas para a vida

Em teoria, as escolhas são guiadas pelos interesses – que, no caso do adolescente, são múltiplos e flutuantes por excelência. “Como eles brotam da aproximação com determinado tema, não dá para saber se há interesse se não houver um mínimo contato”, explica Marlene, da Escola de Aplicação da USP.

O que está em jogo é o repertório do aluno, sobre o qual se baseia todo o processo de escolha. “Às portas do Ensino Médio, ele ainda é novo demais para delimitar seus interesses”, diz Marlene. “Se o acesso à informação se estreitar, corre-se o risco de tomar decisões baseadas em preconceitos próprios ou de terceiros, tais como ‘Física é difícil’, ‘Matemática é para poucos’ ou ‘Ciências Humanas são mais fáceis’.”

Na mesma linha de raciocínio, a psicóloga Claudia, diretora do Colégio Magno, questiona a legitimidade de o adolescente definir o que quer aprender, “em detrimento de outros temas que sequer lhe serão apresentados no novo modelo de Ensino Médio”. Segundo ela, “a flexibilização do currículo não pode cercear as escolhas em prol de uma suposta liberdade concedida ao aluno”.

Já para Priscila, do Todos pela Educação, o repertório limitado do adolescente não justifica a infantilização dele por parte da escola. “A superproteção tolhe a autonomia, que inevitavelmente lhe será exigida na vida adulta”, argumenta. Ela acrescenta que é preciso acreditar na capacidade pensante do aluno. “O que ainda lhe falta cabe à escola proporcionar, num espaço em que ele se desenvolva e que esteja a serviço do projeto de vida dele.”

Para ouvir o que os próprios jovens têm a dizer sobre seus interesses e expectativas quanto ao Ensino Médio, a Unesco organizou a consulta pública intitulada “Diga-lhes o que você quer aprender”. A iniciativa, coordenada pelo Escritório Regional de Educação da Unesco para a América Latina e o Caribe ao longo de 2016, mobilizou estudantes de 15 a 25 anos.

Os resultados preliminares revelam a demanda por conhecimentos e assuntos da atualidade, além de diversos conteúdos curriculares. “Os jovens veem como necessárias as habilidades básicas em leitura e matemática, mas também querem recuperar a importância dos idiomas globais e locais e aprender sobre as formas de organização das sociedades”, explica a Representação da Unesco no Brasil, em nota publicada no site da organização.

Os dados ainda indicam que a juventude deseja aproximar-se tanto das áreas científica e tecnológica quanto das Artes, em todas as suas formas de expressão. “Querem aprender a se olhar, a identificar suas capacidades e receios e a observar o mundo, sua lógica e dinâmica”, complementa o comunicado.

Em linhas gerais, as conclusões apontam para a reivindicação de um aprendizado holístico. “As habilidades básicas não são suficientes: querem uma formação integral e com valores”, diz o coordenador da consulta pública Atilio Pizarro, também na nota da Unesco.

A expectativa dos jovens, porém, contrasta com a percepção que têm da realidade escolar. Segundo enquete do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), também feita no ano passado, 45% dos estudantes brasileiros (15 a 25 anos) afirmam que o propósito do Ensino Médio é prepará-los para o vestibular/Enem. Apenas 35% dizem que ele serve para habilitá-los para a vida e 7%, para o mercado de trabalho.

Na mesma direção, caminha o levantamento do Observatório Latino-Americano da Juventude. De acordo com a entidade, um quinto dos jovens da América Latina acha que o conteúdo aprendido nas escolas não é útil “nem para viver, nem para trabalhar”.

Projeto de vida

O hiato entre as realidades do jovem e da escola já é assunto antigo. Mas agora virou matéria com força de lei, haja vista o novo parágrafo da LDB (Lei de Diretrizes e Bases), inserido pela Medida Provisória 746/2016: “Os currículos do Ensino Médio deverão considerar a formação integral do aluno, de maneira a adotar um trabalho voltado para a construção de seu projeto de vida e para sua formação nos aspectos físicos, cognitivos e socioemocionais” (Artigo 36 da Lei 9.394/1996, Parágrafo 5º).

O texto legal lança luz sobre a aderência que o currículo deve ter aos interesses e projeto de vida do estudante, acompanhada de autonomia para ele priorizar a área de estudo que desejar. “Começar a fazer escolhas já é uma forma de iniciar um projeto de vida”, diz Priscila, do Todos Pela Educação. Ela ainda ressalta que, quanto mais intencional e pedagógico for o processo, maior será a consciência do jovem quanto a suas ações.

Por outro lado, a influência do meio sobre as decisões e a construção do projeto de vida também deve ser considerada. Marlene, por exemplo, considera essencial que o aluno leve em conta suas condições econômicas. “A ideia não é apontar o impossível, mas se conscientizar de que escolhas exigem planejamento”, explica a orientadora pedagógico-educacional da Escola de Aplicação da USP.

Por sua vez, Claudia alerta para o risco de as opções se limitarem ao que está ao alcance dos olhos. “Sem uma formação abrangente, como o aluno pode projetar o que ele nem sabe que existe além do que o circunscreve?”, questiona a diretora do Colégio Magno. Ela ainda afirma temer que cresçam as diferenças socioeconômicas e territoriais no país. “Se o aluno tiver limitados seus caminhos formativos em nome da flexibilização – que também se estende às escolas, que serão livres para decidir quais itinerários oferecer –, o projeto de vida será sempre restrito ao que ele pode enxergar.”

Desafio da escola

À escola, a MP 746/2016 atribui o dever de orientar o aluno na escolha da área do conhecimento ou de atuação profissional que determinará o itinerário formativo dele ao longo de todo o Ensino Médio. Em outras palavras, o desafio é dar condições para que o jovem construa um projeto de vida baseado em reflexões e decisões que conduzam à concretização do mesmo.

Veja, a seguir, algumas propostas de especialistas:

Claudia, psicóloga: “Ainda vamos estudar como tudo transcorrerá. Mas, em linhas gerais, apostaremos na parceria entre os itinerários para apresentar todos os caminhos ao estudante”, afirma, ao se referir aos planos do colégio que dirige.

Maíra, da Cia. dos Talentos: “O ideal seria promover uma experimentação acessível, com eventual mudança de rota durante o curso. O nó está em criar mecanismos que estimulem escolhas e levem o aluno a experimentar antes de decidir. Alguns possíveis caminhos seriam: trilhar mais que um itinerário formativo ao mesmo tempo; vivenciar um pouco de todos os itinerários antes de optar por um deles; e promover um conjunto de assessments (testes associados a estudos estatísticos) para ajudar o jovem a se conhecer.”

Marlene, da Escola de Aplicação da USP: “Vamos acompanhar os alunos desde o Fundamental, com doze anos de trabalho em torno do processo de escolha”, diz ela, ao mencionar a estratégia da instituição onde atua como orientadora pedagógico-educacional.

Priscila, do Todos pela Educação: “A mentoria será um meio eficaz de ajudar o aluno a formular escolhas, pensar em objetivos (de aprendizagem e de vida), ganhar autonomia para conquistá-los e, assim, ampliar sua atuação no mundo.”

SONHO COM DEGRAUS

“A visão destemida do futuro é o primeiro passo na construção do projeto de vida. Mas, antes que o projeto de vida se delineie, é necessário que, em nível mais profundo que o racional, surja no jovem um desejo profundo em relação ao futuro. Este desejo é um sentimento, e, como tal, não pertence ao âmbito da racionalidade. Trata-se de um querer-ser que ainda não passou pelo crivo da razão. Quando o desejo, o querer-ser, passa pelo crivo da razão, ele se transforma num projeto de vida, ou seja, num sonho com degraus, num trajeto com etapas, que devem ser vencidas para se atingir o fim almejado.

O projeto frequentemente se transforma numa visão de futuro, numa espécie de memória de coisas que ainda não aconteceram, mas que, se assumidas com determinação e esforço, podem tornar-se realidade. É neste momento que a vida do jovem passa a ser revestida de sentido. O sentido da vida é aquela linha, que une o ser ao querer-ser. Tudo que nos encaminha na direção e no sentido do nosso projeto de vida, do nosso querer-ser racionalizado, agrega valor à nossa existência. Por outro lado, tudo que nos detém, nos desvia ou nos faz retroagir é visto e sentido como uma agressão ao nosso ser. A beleza do sentido da vida reside no fato de ele constituir-se no fundamento da autodeterminação do jovem ou, em outras palavras, da sua busca de autonomia. Agora, já não serão os seus familiares, os seus amigos ou os seus educadores, os que decidirão o seu rumo, é ele próprio – ninguém mais, ninguém menos – que se incumbirá, em última instância, de fazê-lo.”

Trecho do artigo Da Heteronomia à Autonomia, de Antonio Carlos Gomes da Costa. (www.dersv.com/costa-autonomia.pdf).

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