A fome e a vontade de aprender
Conheça dois projetos didáticos que unem criatividade e dedicação em prol da sustentabilidade e da alimentação saudável.
Texto Ricardo Prado
“A gente não vai esquecer nunca esse dia!”. A professora de Geografia Tânia Maria Uehara Alves ouviria essa frase algumas vezes, com pequenas variações, durante o trajeto de uma hora e meia entre o Instituto Tomie Ohtake, na zona oeste da capital paulista, e o CEU Paulo Gonçalo dos Santos, próximo à represa Billings, na zona sul. Para muitos adolescentes naquele ônibus, envoltos na algazarra tão comum às excursões escolares, aquela viagem era especial porque nunca haviam passado dos limites do bairro da Pedreira, muito menos ido a um museu “cujo próprio prédio já é uma obra de arte”, destacaria mais tarde Tânia, ao recordar o dia de glória para as turmas do 6o ano da escola. Afinal, aquele foi um dia de premiação.
Mais que um prêmio, aqueles jovens conseguiram um feito: transformaram a realidade escolar com o projeto interdisciplinar “Sementes dos Sonhos”. O projeto, vencedor do Prêmio Territórios 2018, nasceu da iniciativa de Tânia e da professora Ana Rita de Carvalho de Jesus, que ensina Ciências para as mesmas turmas. As duas perceberam a indignação dos alunos com a iminente aprovação de um Projeto de Lei que deve liberar o uso de agrotóxicos em uma escala nunca vista no país. Da indignação coletiva, surgiu um projeto interdisciplinar que envolveu toda a escola e que despertou o desejo de estudar mais sobre a ocupação do solo da região onde fica a escola e onde moravam os alunos.
Alunos da Escola Estilo de Aprender, durante os encontros do Projeto Comida e Cultura
O projeto cresceu e foi mais longe: gerou um movimento em defesa de uma alimentação mais saudável nas escolas que já produziu um abaixo-assinado e ainda promete muitas ações para impedir que o projeto de lei que libera os agrotóxicos vá adiante e seja um risco para a saúde.
Do território às histórias de vida
Concedido pelo Instituto Tomie Ohtake e pela Secretaria Municipal de Educação de São Paulo para reconhecer projetos educacionais que desenvolvam o protagonismo juvenil, a interdisciplinaridade e a participação coletiva “em interação com as diversas potencialidades da cidade”, o Prêmio Territórios 2018 coroou o trabalho dos alunos do CEU Paulo Gonçalo dos Santos, que atuaram em dois problemas graves: os riscos para a saúde do uso indiscriminado de agrotóxicos e a ameaça que pairava sobre os últimos agricultores familiares da cidade, que vêm sofrendo com o fim das compras de alimentos orgânicos pela Prefeitura para incrementar a merenda escolar.
Tudo começou com o resgate da história da origem das famílias da turma, quase todas originárias de zonas rurais de Minas Gerais ou de estados do Nordeste, que migraram para São Paulo em busca de melhores condições de vida. “Fizemos o mapeamento da origem das famílias em Geografia, e as crianças produziram um livro, com gráficos e relatos, recuperando essa história”, relata Tânia, referindo-se ao início do projeto, no primeiro semestre de 2018. “A partir da memória das famílias, estudamos a situação dos trabalhadores rurais, os conflitos agrários e a migração para o Sudeste”, explica.
Até que, por meio da pesquisa feita pelos próprios alunos, surgiu, nos acalorados debates que se travavam em classe, a tramitação no Congresso Nacional, em regime acelerado, do Projeto de Lei 6299/02 que, se aprovado, permitirá o uso de novos pesticidas mesmo sem testes conclusivos dos órgãos ambientais (Ibama) e de saúde (Anvisa). “Eles foram entender o caminho que aquele projeto tinha seguido, por que transitou lentamente desde 2002 e foi acelerado a partir do governo Temer, e também estudaram o impacto que essa aprovação pode ter na saúde das pessoas e no meio ambiente”, conta a professora.
O passo seguinte, decidido coletivamente, foi preparar apresentações para as famílias. Aquela turma do 6o ano queria contar o que descobriu para seus pais, a maioria formada por ex-agricultores. “Eles fizeram peças audiovisuais e apresentaram primeiro para os alunos das outras turmas e, depois, para os pais. Foram feitos três seminários à noite e um no sábado. Houve uma adesão bacana dos pais, que também trouxeram contribuições”, conta Tânia.
As descobertas foram se sucedendo, quanto mais a turma investigava. Os alunos descobriram que desde 2015 há uma legislação na cidade de São Paulo que obriga a inclusão de produtos orgânicos na composição de parte da merenda escolar. Infelizmente, os jovens constataram que aquele era mais um caso de lei bem-intencionada com dificuldade em ser aplicada. Em 2016, forma investidos apenas 30% dos R$ 8 milhões previstos pela Prefeitura para a compra de alimentos orgânicos para a merenda escolar; em 2017, o desempenho foi pior ainda: apenas 0,7% da verba foi de fato para os produtores rurais e, depois, para o prato dos estudantes da rede pública municipal, como prevê a Lei 16.140/2015.
Tendo como pano de fundo as características especiais do território onde se situa a escola, junto à represa Billings e próximo de duas grandes áreas de proteção ambiental, as APAs de Bororé-Colônia e Capivari-Monos, a questão ambiental dessa discussão em torno dos alimentos também emergiu nos debates do 6o ano. “Cerca de 30% do território paulistano é zona rural, embora a gente não se dê conta disso. Boa parte da produção agrícola que abastece a cidade é proveniente dessa região do extremo sul do município. Só que as atividades econômicas aqui precisam ser compatíveis com a sustentabilidade dessa região, de proteção de mananciais. Como o atual Plano Diretor reconhece a existência de uma zona rural na cidade, abriu-se a possibilidade de os pequenos produtores rurais terem acesso ao crédito para suas plantações”, explica a professora Tânia, resumindo as pesquisas colhidas pela turma.
Com essas informações em mãos, o passo seguinte foi buscar quem plantava ali perto da escola. Não foi difícil chegar à Cooperapas, uma cooperativa de agricultura orgânica formada por 37 produtores familiares da região de Parelheiros. “A Lia Góes, vice-presidente da cooperativa, veio até a escola fazer oficina de horta orgânica com as crianças. A partir daí, a escola passou a ter uma horta. Fizemos também oficinas com garrafas PET para os alunos levarem mudas para suas casas”, relata a professora Bianca Alexandre, responsável por alunos do Fundamental 1 que passaram a integrar o projeto, colaborando com a manutenção da horta e da pequena compostagem, criada mais para motivos didáticos.
Nessa altura, os outros professores do 6o ano já se mobilizavam para aproveitar aquele envolvimento tão cativante da turma com a temática do território e das histórias familiares, que se entrelaçavam cada vez mais ao próprio trabalho escolar. Assim, em Língua Portuguesa os alunos encenaram trechos de O Quinze, de Rachel de Queiroz, romance sobre a famosa seca de 1915, além de Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, e Triste partida, de Patativa do Assaré. Em Artes, houve uma releitura de quadros que mostravam o processo de imigração, como a série Os retirantes de brasileiras estão obesas ou acima do peso. Muitas também estão subnutridas, já que o consumo de produtos ultraprocessados, extremamente pobres em termos nutricionais, alimenta esse fenômeno mundial. A Organização Mundial de Saúde (OMS) já trata a obesidade infantil como uma pandemia desde 2017.
Cândido Portinari; a disciplina de História trouxe a contextualização da migração interna no Brasil. Em Língua Inglesa, uma maquete do entorno da escola, devidamente legendada em língua estrangeira, avançava um pouco mais o (re)conhecimento da turma diante de um território que, se era velho conhecido, ganharia novos contornos com a visita ao Sítio do Vovô Joaquim, o cooperado incumbido de receber os quase 100 alunos do 6o ano com um estimulante café da manhã, para em seguida mostrar a eles como é a vida de um dos últimos agricultores na maior metrópole do país.
O Prêmio Territórios 2018, além do reconhecimento, trouxe uma verba de dois mil reais para o projeto. Isso deu um novo gás para a antiga turma do 5o ano, que herdou o projeto em curso e, também, a luta iniciada pela turma antecessora. Assim, na festa caipira realizada em junho teve início a coleta de assinaturas para um abaixo-assinado dirigido à Prefeitura, para que essa volte a comprar merenda orgânica para as escolas, conforme prevê a lei. “O plano é envolver as outras escolas da região para que a merenda possa se tornar até 100% orgânica. Lutar por uma merenda orgânica não é apenas lutar por uma alimentação mais saudável para os próprios alunos, mas também lutar pela preservação das áreas ambientais e pela sustentabilidade econômica dos agricultores familiares da cidade”, finaliza Tânia, feliz com o resultado de um projeto que vem ensinando a todos, sejam alunos, pais ou professores; e, certamente, também feliz com sua decisão de voltar para a docência depois de se aposentar na rede privada. Afinal, escola sempre é lugar de aprender.
A chef-educadora Priscila propôs, então, um projeto para a Escola Estilo de Aprender, onde estudavam seus dois filhos. A ideia era oferecer aulas de culinária para as turmas da Educação Infantil e do Fundamental 1 para que, pela prática e pelo sabor, as crianças aprendessem a valorizar a alimentação saudável. A proposta foi bem recebida pela direção, que sugeriu envolver outra mãe, Ariana Doctors, ex-proprietária de um restaurante de comida marroquina. As duas já se conheciam de reuniões de pais e juntaram suas afinidades culinárias e percepções sobre a importância de se falar sobre comida com crianças. Mais do que isso, sobre a importância de cozinhar junto com elas, fazê-las manipular os alimentos, provar, cheirar, e concluíram que tudo aquilo poderia ser objeto de estudo na escola. Foi dessa conversa que nasceu o “Projeto Comida e Cultura”.
Cozinha é lugar de criança
O desejo de voltar a trabalhar em escolas moveu outra professora que andava inconformada de não ter mais alunos por perto. Formada em Pedagogia pela PUC-SP, Priscila Vieira havia deixado para trás o trabalho na Educação Infantil da Escola da Vila depois que seus filhos nasceram e que, juntamente com seu marido, passou a cuidar do restaurante Empório Sagarana, na zona oeste de São Paulo. Boa cozinheira, Priscila pilotou a cozinha do restaurante até que os filhos crescessem, o negócio fosse vendido e surgisse nela a vontade de juntar sua paixão pela culinária com outra paixão: a de ensinar.
Como ponto de partida, uma percepção incômoda atormentava a chef Priscila. “Criou-se uma visão de que a comida vem do supermercado e da indústria, não da natureza”. A isso se juntou uma informação que a deixou chocada e mobilizada como educadora: cerca de um terço das crianças brasileiras estão obesas ou acima do peso. Muitas também estão subnutridas, já que o consumo de produtos ultraprocessados, extremamente pobres em termos nutricionais, alimenta esse fenômeno mundial. A Organização Mundial de Saúde (OMS) já trata a obesidade infantil como uma pandemia desde 2017.
A chef-educadora Priscila propôs, então, um projeto para a Escola Estilo de Aprender, onde estudavam seus dois filhos. A ideia era oferecer aulas de culinária para as turmas da Educação Infantil e do Fundamental 1 para que, pela prática e pelo sabor, as crianças aprendessem a valorizar a alimentação saudável. A proposta foi bem recebida pela direção, que sugeriu envolver outra mãe, Ariana Doctors, ex-proprietária de um restaurante de comida marroquina. As duas já se conheciam de reuniões de pais e juntaram suas afinidades culinárias e percepções sobre a importância de se falar sobre comida com crianças. Mais do que isso, sobre a importância de cozinhar junto com elas, fazê-las manipular os alimentos, provar, cheirar, e concluíram que tudo aquilo poderia ser objeto de estudo na escola. Foi dessa conversa que nasceu o “Projeto Comida e Cultura”.
Inserido na grade curricular desde 2017 com uma aula de 45 minutos por semana, primeiro como projeto-piloto para oito turmas e depois, com a propaganda boca a boca da criançada, estendido para todos os anos, o “Comida e Cultura” ganhou um espaço próprio: uma cozinha construída nos moldes de uma casa na árvore, aconchegante e bem aparelhada, com três mesas redondas para acomodar as turmas de até 20 crianças.
Quem aparece por lá de surpresa pode encontrar crianças de três anos manipulando facas para cortar tomates, sob a supervisão de Priscila ou Ariela, cada uma responsável por um período. É possível vê-las entretidas com livros de fotos que mostram as frutas, plantas, bichos e toda a riqueza da biodiversidade brasileira – nesse caso, seria a etapa de aquecimento para uma receita nova e divertida, já que a biodiversidade é o fio condutor do projeto. Um brigadeiro de tucumã, com castanha-do-pará granulada de cobertura, pode ser o desfecho da aula sobre a Amazônia. Ou açaí de palmito juçara, típico do bioma da Mata Atlântica. “Já fizemos uma brusqueta com cambuci, uma fruta típica do Sudeste, que não se encontra nos supermercados”, exemplifica Priscila, explicando que se trata de uma fruta importante para se manter a floresta em pé porque é abundante na região da Mata Atlântica, e quem faz essa coleta são os povos tradicionais, como os quilombolas, os caiçaras e quem pratica a agricultura familiar. “Comprar esses alimentos de produtores locais ajuda a fortalecer um projeto chamado Rota do Cambuci”, explica Priscila, acrescentando que, além de todas essas qualidades, a fruta ainda é rica em vitamina C. E deliciosa. “Por sinal, já provou formiga?”, oferece. Incrível: tem gosto de cidreira! “Nossa ideia é ver toda criança sair daqui sabendo fazer arroz, feijão e ovo”, comenta Priscila, detalhando que esses produtos são trabalhados por módulos. “No módulo de arroz, trouxemos vários tipos de produto e fizemos algumas receitas. Depois, fizemos o mesmo com o feijão: trouxemos vários tipos de leguminosas para eles conhecerem; depois com o ovo também, eles conheceram e experimentaram vários tipos.”
Preocupadas em deixar claro para as crianças que um pé de couve não nasce no supermercado, Priscila e Ariela reforçam sempre a questão da origem do alimento que será manipulado pela turma. Se quando estudaram a Mata Atlântica havia os coletores de cambuci, no Cerrado estudaram o mesocarpo do coco de babaçu, que vem de uma comunidade quilombola kalunga da Chapada dos Veadeiros. “Nós trabalhamos muito com os produtos que o Instituto Ata cataliza [criado pelo chef Alex Atala, conta com um ponto de venda no Mercado Municipal de Pinheiros, em São Paulo]. São produzidos por comunidades quilombolas, indígenas e pela agricultura familiar. É importante, para nós, não desvincular os projetos da natureza e das comunidades que vivem ali”, explica. Espetinho de frutas com farinha de jatobá, uma farinha supernutritiva comprada da Cooperativa Central do Cerrado, e pratos feitos com castanha de baru também integraram o módulo Cerrado – bioma devidamente apresentado às crianças por um belo livro de fotografias.
Se elas gostam das aulas? “Elas amam!”, relata Priscila. “A gente tira esse receio que muitas têm da cozinha. A cozinha é um lugar em que se entra com atenção, onde seu corpo precisa estar presente, seu pé precisa estar no chão. A gente mostra como cortar o tomate ensinando como usar a faca; explica como quebrar o ovo, e cada criança tem a oportunidade de quebrar um. E vamos tirando as dúvidas individualmente, com a ajuda das professoras de cada turma”, detalha. Assim, desde pequenas vão descobrindo as maravilhas da biodiversidade brasileira, tão pouco valorizada até agora, mas que pode ter uma nova chance quando crianças que cresceram estimuladas a brincar com a fome e a vontade de aprender estiverem decidindo o que comprar para cozinhar para seus filhos.