A confusão do Ensino Médio
Com a implementação suspensa pelo MEC em abril, uma consulta pública ampla que se encerrou em agosto e um projeto de lei encaminhado à Câmara em outubro, a reforma do Ensino Médio sofrerá sua própria reforma.
Texto: Ricardo Prado
O ensino médio sempre foi um ponto nevrálgico da educação brasileira. Até o final do século passado, por um histórico de exclusão, era um filtro que só deixava passar cerca de um quarto dos jovens estudantes que completavam o Ensino Fundamental. Boa parte deles mirava algum curso superior, enquanto uma parcela menor, que havia frequentado o Ensino Médio técnico-profissional, encerrava ali seu processo de formação, ingressando no mercado de trabalho. Eram os egressos das classes mais populares. “Do final do século passado para este, nós saltamos de três milhões para nove milhões de matrículas no Ensino Médio. Enquanto a gente tinha 25% dos jovens dessa faixa etária cursando o Ensino Médio, o segmento era pensado como treinamento para o nível superior e quem não ia para a faculdade fazia os cursos técnicos. Essa dualidade era meio pacificada. Só que, quando o país passa para nove milhões de matrículas, entra no Ensino Médio uma juventude que nunca ocupou este lugar. Então esse é um dado fundamental para entender as disputas atuais”, observa Monica Ribeiro da Silva, professora da Faculdade de Educação da Universidade do Paraná (UFPR) e coordenadora do Observatório Nacional do Ensino Médio.
Esse salto no número de matrículas no Ensino Médio teve início com a expansão da escolaridade na etapa anterior. Embora o Ensino Fundamental seja obrigatório no Brasil desde 1971, ele somente ganharia fôlego a partir da definição das regras de financiamento da educação, em 1997, com a criação do Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério) — mais tarde chamado de Fundeb (2007) e que passou a incluir as etapas da Educação Infantil e do Ensino Médio.
O Ensino Médio se tornou obrigatório apenas em 2013, ou seja, há uma década. De lá para cá, os desafios foram se multiplicando até culminar no problema de inclusão. Como acolher esse novo alunado e oferecer uma educação de qualidade, que fizesse sentido para esses jovens, muitos deles os primeiros de sua família a alcançarem essa etapa da educação? Afora o novo desafio da inclusão, o fantasma da exclusão continuava a rondar essa etapa da Educação Básica, e as elevadas taxas de evasão escolar não deixavam dúvidas: algo precisava ser feito.
O embrião da Reforma
Com a obrigatoriedade e os aumentos dos números de alunos e de evasão escolar, surgiriam as primeiras discussões sobre uma necessidade de Reforma do Ensino Médio. Seu embrião pode ser localizado no Projeto de Lei n. 6.840, do deputado Reginaldo Lopes (PT-MG), que trouxe à baila temas como a jornada em tempo integral e a reorganização dos currículos em áreas do conhecimento. O projeto serviu como caixa de ressonância de diversas insatisfações vindas do chão da escola e dos ensaios e pesquisas de educadores que se voltavam para essa etapa do ensino. As críticas iam do caráter conteudista de boa parte do currículo a uma visão fragmentária do processo educativo, com 13 disciplinas que pouco conversavam entre si. Algumas organizações da sociedade civil e de educadores como a ANPEd (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação) se reuniram em torno do Fórum Nacional de Educação para influenciar as discussões em torno do Ensino Médio por ocasião das plenárias do Plano Nacional de Educação (PNE), que entraria em vigência no ano seguinte, 2014.
De outro lado, fundações criadas por empresas, e que se reuniriam em torno da organização Todos Pela Educação, criada em 2006, também se apresentavam como interlocutores dos governos estaduais — os principais responsáveis pela oferta de Ensino Médio no país — nessa discussão que envolvia, basicamente, tornar o Ensino Médio mais atraente para os jovens, freando a curva ascendente da evasão escolar por meio da oferta de uma educação mais qualificada. Essa discussão passava pela necessidade de se estabelecer uma base curricular unificada para todas as escolas do país, algo até então inexistente.
O passo seguinte seria dado em 2015, com a criação de uma Comissão de Especialistas, composta de 116 membros para a elaboração de uma proposta de reforma do segmento e de constituição de uma Base Nacional Comum Curricular, que resultaria na BNCC. No entanto, a discussão seria engolfada pela turbulência política do impeachment da presidente Dilma Rousseff e a ascensão de seu vice, Michel Temer. Em poucos meses, e por meio de uma Medida Provisória, a proposta do Novo Ensino Médio seria enviada ao Congresso Nacional e aprovada. As discussões de possíveis modelos, que se prolongavam desde 2013 e que colocavam em campos opostos organizações de professores, alunos e estudiosos da universidade, congregados em torno do Fórum Nacional de Educação, e de outro, as fundações que exerciam influência crescente junto às Secretarias Estaduais de Educação, se encerrariam abruptamente com a aprovação da Lei n. 13.415, que instituiu o Novo Ensino Médio.
O modelo vencedor foi o defendido pelas fundações privadas que atuam na educação, que apoiavam maior flexibilização curricular, a criação de itinerários formativos e a redução da carga obrigatória comum a todos os estudantes. Ao outro lado restou alertar que problemas surgiriam uma vez que a Reforma, mesmo mexendo em estruturas importantes do Ensino Médio — como transformar em componentes curriculares ou áreas de saber as tradicionais 13 disciplinas, das quais restariam apenas três de caráter obrigatório (Língua Portuguesa, Matemática e Inglês), e propor um aumento da carga horária anual —, não oferecia as condições e os materiais para essas mudanças.
De fato, a partir de 2020, quando as primeiras redes estaduais passaram a implementar as mudanças previstas, o Novo Ensino Médio começou a apresentar velhos problemas conhecidos dos educadores e pesquisadores da área, como a falta de professores para preencher os itinerários formativos, ou novos, como a falta de critérios pedagógicos para a criação desses itinerários. Do lado dos alunos, rapidamente se constatou que a prometida possibilidade de escolha de itinerários estava incondicionalmente vinculada à capacidade das escolas de oferecerem uma gama diversificada de opções. Escolas localizadas em regiões mais periféricas não conseguiam oferecer a prometida diversidade de caminhos formativos possíveis. Conforme levantamento feito pela Repu (Rede Escola Pública e Universidade) na rede paulista, a primeira a implementar a reforma, 35% das escolas de Ensino Médio ofertavam em 2021 apenas dois itinerários formativos. E das 334 escolas estaduais de Ensino Médio que eram as únicas em seus municípios, 50% também ofertavam somente dois itinerários formativos.
Para especialistas, é clara a necessidade de fazer correções. A proposta do nem foi implementada de maneira equivocada. não houve diálogo, preparação e formação de professores.
Itinerários questionados
O estreitamento de possibilidades de passar no Enem é a questão que preocupa o jovem Arthur Yan Mello, estudante do 3o ano de Ensino Médio de uma escola pública em Paulínia, interior de São Paulo. Seu sonho é cursar História na Unicamp, mas vê seu objetivo ficar cada vez mais distante ao constatar que as aulas de História estão sendo substituídas por aulas de utilidade duvidosa que compõem os itinerários. “Os professores estão tendo que ‘se virar nos 30’, tentam passar algum conteúdo que possa ser útil porque na minha escola o professor de História está dando aula de Projeto de Vida. E ele nem foi formado para isso!”, se indigna o jovem.
O mesmo drama vive Laura Neris, estudante do 3o ano de uma escola na capital paulista. Ela também sonha ser historiadora, mas em vez de aulas de História, Sociologia e Filosofia, gasta boa parte da carga horária escolar às voltas com um itinerário formativo que ela alega não ter escolhido. “Fiz a escolha, coloquei Humanas em primeiro, só que eu caí num itinerário que se chama “Quem divide multiplica”. Fugiu completamente do que eu queria estar estudando”, lamenta Laura, que também confirma que ela e seus colegas vêm pressionando os professores a abandonarem o conteúdo das ementas dos itinerários formativos e substituí-los pelos que serão exigidos no Enem.
Monique Pessoa, formada em Ciências Sociais pela Unesp e professora de uma Etec na capital paulista, confirma essa pressão por parte dos alunos. “Eu estava numa aula de Filosofia, no 2o ano. Normalmente abordo René Descartes no 1o ano, mas depois da Reforma ficou no 2o, e a aluna pediu para continuar dando o conteúdo de Filosofia no 3o ano. Só que, pelo novo currículo, não há aula de filosofia”. Ela também confirma o desprestígio da chamada “parte flexível” do currículo por parte dos alunos. “Agora é normal, já entrou para o cotidiano da escola: eu passo e vejo alunos ali no pátio, sem assistir à aula. ‘Por que vocês estão aqui no pátio?’ ‘Ah, professora, é aula do itinerário. Eu só vou para aula de Geografia, História, Matemática, não vou para aula do itinerário.’ E não dá para culpar porque até o professor que está ali não consegue dar essas aulas porque ele não sabe o que fazer com os alunos”, justifica Monique. Ela estende a crítica a outros itinerários disponíveis em outras escolas, alguns até chegaram a ganhar manchetes nos jornais, de tão esdrúxulos, como “Brigadeiro gourmet”, e outros na linha do chamado empreendedorismo. E como corrigir as distorções amplificadas pela Reforma? “Reformar a Reforma não vai mudar a nossa situação”, afirma a professora. Para ela, a atual reforma só pode ter um destino: a revogação.
Para as escolas privadas, a mudança não seria tão disruptiva. Ana Bergamin, coordenadora de Ensino Médio do Vera Cruz, na cidade de São Paulo, conta que após a aprovação da Lei n. 13.415, ela se reuniu com os professores do ciclo e todos se propuseram a pensar coletivamente como se adaptariam à nova legislação. “Era uma questão de estabelecer um novo balanço do tempo didático e, antes de tudo, tiramos algumas premissas, como, por exemplo, o que seriam para nós pontos inegociáveis”, rememora. Ela cita como pontos inegociáveis manter conteúdos das disciplinas de Filosofia, Sociologia, Educação Física e Arte, em coerência com um projeto pedagógico humanista no qual esses saberes exercem um papel central na formação do estudante. Outro item inegociável foi a manutenção da festa de dança e música celebrada todos os anos entre setembro e outubro, por ocasião do aniversário da escola — na qual mais de 200 estudantes de todas as séries sobem ao palco.
Já o desafio em recalibrar o “balanço do tempo didático” estava na Formação Geral Básica, para a qual a nova legislação havia criado um teto de 1.800 horas. Com 3.400 horas/anuais, e a clara percepção de que todos os seus alunos, sem exceção, miravam a faculdade, o jeito foi criar itinerários formativos que juntassem a fome de aprender com a proposta interdisciplinar do Novo Ensino Médio. Para as Ciências Humanas, Ana exemplifica, “um dos itinerários era sobre outras formas de viver que não a nossa, outras culturas não hegemônicas, no tempo e no espaço. Nesse itinerário temos História, Filosofia e Geografia debruçadas sobre essa questão. Já o de Ciências da Natureza pegou um tema gerador que é a questão do recurso natural. O que é o recurso natural, sob o ponto de vista das Ciências. Então, os saberes da Biologia e da Química entram aqui, juntamente com a pergunta que está posta para toda a Humanidade: como repensar a nossa relação com os recursos naturais. Esse itinerário dialoga com o estudo do meio, que costumamos fazer no Vale do Petar [Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira], e que, por sua vez, se junta ao itinerário de Humanas na questão dos quilombos que existem nessa região”.
Os Percursos de Aprofundamento e Integração de Estudos (itinerários formativos) deverão combinar três áreas do conhecimento, com pelo menos duas ênfases diferentes.
Um campo em disputa
O MEC sustou a implementação do Novo Ensino Médio em abril deste ano e submeteu o tema à consulta popular. De abril a agosto aconteceram 12 webinários, quatro audiências públicas e a entrega de contribuições de 21 entidades educacionais — além da participação on-line, via WhatsApp, de cerca de 140 mil pessoas, entre estudantes e professores. Pressionada, de um lado, pelo Consed, a instância que reúne os Secretários Estaduais de Educação, e pelas fundações privadas que atuam na educação a ajustar sem descaracterizar o espírito da Reforma (ambas publicaram notas após o fechamento da consulta popular defendendo, em linhas gerais, a manutenção do Novo Ensino Médio), a nova gestão do MEC, que herdou o problema do governo anterior, é questionada por outro grupo, que defende a revogação da Lei n. 13.415. A ANPEd manifestou em nota após o fechamento da consulta popular que “a reforma amplia/produz desigualdades entre a rede pública e a rede privada”. A associação alerta ainda para o risco de “privatização da educação pública através das parcerias estabelecidas com organismos internacionais e empresas privadas com fins de aquisição de pacotes pedagógicos para adequação das escolas à reforma”.
Outra crítica recorrente entre os educadores diz respeito ao balanço entre a parte obrigatória e flexível do currículo. Para a pesquisadora Monica Ribeiro da Silva, do Observatório do Ensino Médio, “ao criar os itinerários formativos e reduzir a carga horária na formação comum, de 2.400 horas por ano para 1.800 horas, estamos retirando a possibilidade de acesso desses estudantes a um conjunto de conhecimentos. Então, se ele faz itinerário de formação técnica ou de humanas deixa de ter um aprofundamento em Biologia, Física, Química, Matemática, Arte e assim por diante. Isso já era sinalizado como situação problemática. Porque isso significa não preparar nem para o ensino superior nem para o mundo do trabalho. É uma fragilização da formação desses seis milhões e seiscentos mil estudantes [matriculados nas redes públicas] e, acrescentando a isso, a enorme desigualdade das condições de oferta entre os estados. Não dá para comparar São Paulo com pequenas cidades, sem wi-fi, sem condições de fazer aquela parte da carga horária à distância. Ou seja, muito do que já apontávamos lá atrás como problemas se confirmou agora com a implementação em 2022 e 2023”, afirma.
No final de outubro, o ministro da Educação, Camilo Santana, enviou à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n. 5230/23, que praticamente encerra a curta experiência do Novo Ensino Médio. Retoma os pontos mais contestados, como o mínimo de 2.400 horas de Formação Geral Básica para todos os estudantes do Ensino Médio, sem a integração com um curso técnico, e a volta das 13 disciplinas do currículo anterior. Também torna obrigatório o espanhol como segunda língua estrangeira em um prazo de três anos.
Sobre os itinerários formativos, prevê sua troca por Percursos de Aprofundamento e Integração de Estudos, que devem combinar, no mínimo, três áreas do conhecimento, conforme a relevância para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de ensino. Estes precisarão garantir, no mínimo, dois percursos com ênfases diferentes. Os quatro caminhos de aprendizagem que comporão a parte flexível do currículo terão ênfase nas seguintes combinatórias de áreas: 1. Linguagens, Matemática e Ciências da Natureza; 2. Linguagens, Matemática e Ciências Humanas e Sociais; 3. Linguagens, Ciências Humanas e Sociais e Ciências da Natureza; 4. Matemática, Ciências Humanas e Sociais e Ciências da Natureza. O MEC será responsável por criar os parâmetros de organização curricular para esses percursos.
Além da nova proposta do MEC, correndo por fora está o Projeto de Lei n. 2.601, que revoga o Novo Ensino Médio e também retoma a obrigatoriedade de disciplinas tradicionalmente oferecidas, como Sociologia, Filosofia, Artes e Educação Física, deixando a parte diversificada do currículo, mais reduzida, a cargo dos sistemas de ensino estaduais e distrital. No entanto, a tendência é que a discussão agora se concentre no projeto que veio do governo.
Resta saber o que resultará de tantas consultas, debates e do jogo de pressão entre concepções de ensino e aprendizagem muitas vezes conflitantes. No meio da confusão instalada pela Reforma que mal iniciada se encontra suspensa, milhões de estudantes aguardam, ansiosamente, o desenlace desse projeto de mudança que, por ora, só fez tornar ainda mais agudas as contradições que o ponto nevrálgico da educação brasileira sempre expôs. Permanecemos atentos aos próximos capítulos.