”A violência é uma marca da nossa espécie”
Uma conversa com Leandro Karnal sobre atomização das consciências, diluição de identidades e política de cancelamento nas redes sociais. Afinal, o que é a violência para nós?
Texto: Paulo de Camargo
O historiador Leandro Karnal se tornou, provavelmente, um dos conferencistas mais célebres no mundo da Educação nos tempos recentes. Solicitado em todas as regiões do país, com uma agenda sempre apertada, costuma atender com gentileza aos que o procuram. Suas crônicas publicadas na imprensa também expressam o mesmo olhar afetivo, mas muito crítico, sobre a realidade social moderna. Essa não é uma observação aleatória. Trata-se do próprio tema desta entrevista: a crescente violência das relações humanas. Para Karnal, gaúcho nascido em São Leopoldo, o homo sapiens é uma espécie violenta.
Seu ponto de vista sistêmico vem de suas próprias experiências de vida, de uma formação jesuítica e da passagem pela Universidade de São Paulo, onde fez doutorado, e pela Unicamp, onde foi professor até abril de 2020. Conhecido como conferencista, Karnal também é autor de diversos livros e membro da Academia Paulista de Letras. Atuou como curador em diferentes museus e exposições, inclusive no Museu da Língua Portuguesa. É presença marcante em debates e reflexões na mídia, em programas de rádio e televisão e na internet.
Como escritor, tem cerca de duas dezenas de obras publicadas, entre elas os best-sellers O dilema do porco-espinho: como encarar a solidão e A coragem da Esperança. Sua obra mais recente é Preconceito: uma História, em parceria com o historiador Luiz Estevam, lançado em outubro de 2023. Pouco antes desse lançamento, Karnal concedeu para Educatrix a seguinte entrevista, dirigida aos educadores.
Educatrix | Leandro, em primeiro lugar, um olhar mais amplo. Como você percebe a violência do mundo de forma geral: como historiador, avalia que vivemos tempos mais violentos nas relações sociais cotidianas? Ou seja, desconsiderando o tema da guerra propriamente dito, as relações humanas estão mais violentas para o cidadão comum? Que razões embasam sua opinião a respeito? Leandro Karnal: A violência é uma marca da nossa espécie. Em número de mortos, não superamos a Segunda Guerra Mundial. Fora do campo de batalha, o momento em que vivemos é de muitas violências. Assim, a violência diluída nas redes, no microcosmo de cada grupo social, na linguagem e na política está alta. A grande diferença é que, em Stalingrado, entre 1942 e 1943, o soldado soviético sabia que o invasor nazista era o inimigo declarado. Havia uniforme e união polarizada. Hoje, a guerra diluída está mais presente em todos os lugares, sem uniformes e sem momentos determinados. A atomização das consciências nas redes sociais possibilitou uma diluição de identidades. Quem hoje me ataca no meu perfil pode ser o mesmo que estava ao meu lado no cancelamento de outra pessoa.
Educatrix | A comunicação impacta nessa percepção? A constatação da violência atual é de alguma forma evidenciada por formas mais massivas e instantâneas de comunicação, como as redes sociais? Karnal: Curioso que a comunicação era muito agressiva no passado. Pessoas acima de determinado peso eram atacadas com expressões vulgares e associação com animais grandes. Hoje, em plena era de cuidados com a fala e de exaltação da linguagem inclusiva, a violência assume muitas formas que não o insulto direto. Sem atacar ninguém, um influenciador mostra seu luxuoso carro novo de dois milhões de reais ou tira fotos em um paraíso do Oceano Índico. A mensagem é dirigida para um círculo amplo de uma sociedade, como a brasileira, marcada pela desigualdade e pelo ressentimento. A foto é recebida como um ataque e toca em mecanismos de defesa muito profundos: “Aquele luxo é o que eu condeno por não ser justo e é o que eu desejo por não ser o meu”. Ao acionar os mecanismos que fazem eclodir justiça social e inveja quase ao mesmo tempo, o debate fica polarizado e virulento. Pior: a violência do debate favorece a visibilidade de quem postou. Em resumo, diferente do passado, o ódio declarado rende likes.
Educatrix | De que maneira o tema da violência se relaciona com a educação de crianças e jovens? Em um tempo em que se atribui às escolas e aos professores tantos desafios, é possível dizer que a esperança de relações humanas mais pacíficas deve dirigir os projetos pedagógicos das instituições de ensino? Karnal: A violência nasce fora da escola, assim como a desigualdade brutal do Brasil. Porém, faz parte da educação pensar no aluno como um ser social complexo, que precisa de atenção. Em primeiro lugar, mesmo que não produzamos o mundo, colaboramos para que ele exista por “pensamento e palavras, atos e omissões”. É dever da escola desnaturalizar preconceitos, atenuar violências de linguagem, produzir estímulos ao diálogo e à convivência com a diversidade. Começa por nós, professores, que podemos ser uma pequena barreira de contenção diante da maré de ódio. Não somos onipotentes, mas também não somos impotentes. Ao atuar na sala, vivo o chamado “currículo oculto”, minhas atitudes falam mais do que meus conteúdos.
“A violência nasce fora da escola”
Leandro Karnal
Educatrix | No plano da convivência escolar entre jovens e seus amigos, e entre jovens e professores, o senhor acredita que as escolas têm muito que avançar? Karnal: Sempre temos muito que avançar. As dores do mundo atingem as escolas. O bullying precisa de um bully, de um valentão/valentona. As ações têm pessoas concretas e não são uma abstração. Os bullies buscam aceitação de poder dentro de um grupo. De algumas formas e por incrível que pareça, um ambiente de professores tem assediadores morais: mesmo que não batam em colegas, agridem com palavras, sarcasmos e fofocas. A sala dos professores também é uma rinha. As relações com coordenação e direção podem incluir bullying. Precisamos refletir seriamente sobre nossas maneiras de viver em grupo como adultos e, então, falar de crianças e de adolescentes.
Educatrix | O senhor atribui o agravamento desse cenário de violência na escola ao impacto da pandemia na saúde mental de crianças, jovens e adultos? Do seu ponto de vista, o tema do equilíbrio emocional e da saúde mental deveria ser uma prioridade social, seja das políticas públicas, seja das escolas? O que poderia ser feito? Karnal: Muitas origens. A degradação da saúde mental é evidente após o retorno ao presencial. As neuroses e psicoses dos adultos ecoam nos alunos. O anonimato das redes estimula a covardia de alguns ataques. A polarização política atinge a sala de aula. O diálogo está enfraquecido: o inimigo deve ser eliminado. Vale mais lacrar do que ouvir. A tolerância é lida como fraqueza. A diversidade virou sinal de decadência diante de um mundo imaginado puro e homogêneo no passado. Em algumas escolas específicas que lidam com alunos de elite, o “não” do professor ou do bedel é o único “não” que o aluno escuta na vida e isso tem efeitos enormes. Em um mundo sem limites claros, a autoridade ficou ainda mais opressiva na percepção dos jovens.
“O ódio declarado rende likes”
Leandro Karnal
Educatrix | Nesse plano mais profundo, o mundo de hoje se tornou áspero demais? Na sua visão, estamos vivendo um déficit de acolhimento, empatia, compreensão? Estamos perdidos em um mundo em que, com cada vez mais informação, sobram dados e falta sentido? Karnal: A empatia está em baixa. Ela implica atenção ao outro. Ela implica vontade de conviver no real, não apenas em telas. Ela é uma educação do olhar e paciência de adaptação à alteridade. Todos os valores anteriores estão em baixa. Quero o mundo como eu sou (ou imagino ser) e quero agora. A democracia é entendida como minha para expressão e ação. O Estado democrático de direito é lido por adultos, inclusive, como o espaço do “eu posso tudo”. As redes sociais são “terra de ninguém”. Eu assisti à cena (na pandemia) de alguém recusando máscara no voo por discordar da norma sanitária. Vivemos um mundo onde eu devo opinar sobre todas as coisas e dar o meu voto, inclusive nos campos que excedem minha capacidade ou alçada. Estamos na era do “ultracrepidanismo”, a palavra de origem clássica para indicar que estamos indo além da nossa área de especialidade. Seria bom como um gesto de ruptura e de liberdade, mas não é uma afirmação de liberdade, é um gesto de afirmação do meu eu que deve ser imposto a todos.
Educatrix | Como um pensador da história e do mundo social, como o senhor avalia a dificuldade dos brasileiros em pensar e agir como comunidade? Não temos uma tradição cooperativa, e há uma sensação de um enorme egoísmo, especialmente das chamadas elites. O Brasil deveria investir mais em fortalecer laços comunitários? Karnal: Desde Frei Vicente do Salvador que se diz da nossa dificuldade em sermos repúblicos, ou seja, de pensar a coisa pública, de zelar pelo bem comum. Somos empáticos em pequenos grupos e muito antipáticos em grandes. Nossos laços familiares são mais fortes do que os laços de países mais ao Norte; porém, nossa consciência da cidadania geral é mais esgarçada. Estamos perto do homem que pensa pelo coração, como diria o mestre Sérgio Buarque de Holanda, “homens cordiais”. Isso pode significar que choramos mais em um enterro de ente querido do que pensamos questões gerais de política. O estímulo ao coletivo, à convivência em grupos que excedam a família, é uma tarefa importante da escola. Estamos condenados à convivência, devemos lutar para que ela seja feita em bases mais harmônicas. Não precisamos amar ninguém, mas necessitamos respeitar todos.
Educatrix | Pensando exclusivamente no professor, como ele deve se posicionar nesse contexto? Como a ideia da educação em valores deve perpassar o trabalho do educador contemporâneo? Karnal: Começa por uma metanoia, uma mudança em si. Quais os meus valores? Tenho algum traço de preconceito? Se tenho, o que devo ler e viver para superar? O cuidado com o jardim começa no jardineiro. Depois passo à minha ação. Minhas falas e ações devem estimular a convivência, a diversidade, o respeito e a democracia. Se eu não entender que esta é uma ação fundamental, estou abrindo mão de um papel axial do educador.
Educatrix | Por fim, o tema da diversidade, sob todas as suas formas, é um grande desafio para toda a sociedade e para a escola. Na sua visão, como a dificuldade de lidar com a diversidade se liga a outros temas? Karnal: O diferente desafia e causa desconfiança. Fomos treinados para buscar o similar. Queremos uma ideia de segurança de pertencimento e fomos educados a confiar na similitude. Somos primitivos e desconfiados. Temos medo e somos inseguros. Porque nossa vida sexual é insatisfatória. Porque lemos pouco e mal. Porque somos frustrados e ressentidos. Somos escassos em recursos imaginativos e temos limites de inteligência. Somos fracos. Porque, com tudo isso, somos fáceis de ser conduzidos por líderes manipuladores que apontam a diferença e dizem que ela nos enfraquece, quando ela nos fortalece.
Leandro Karnal é historiador, professor e autor de diversos livros didáticos e paradidáticos. É um dos maiores pensadores brasileiros da atualidade.