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Nunca gostei de ser “índio”

Uma experiência sobre convivência e o olhar para o outro.

Texto:  Daniel Munduruku 

Nasci com cara de índio, dizem, mas só soube disso depois. Colegas de escola assim me definiram tão logo me viram chegando com um uniforme apertado, fazendo conjunto com um short e com um sapato com número menor que meu pé. Foi uma experiência muito estranha para mim e me deixou meio traumatizado. É que eu cresci em uma pequena comunidade no interior do Pará. Era uma aldeia, mas lá ninguém se apelidava de índio. Todos tínhamos nome, sobrenome, parentesco, amigos e animais de estimação. O que não tinha era energia elétrica e, por isso, a vida começava cedo para aproveitar bem a luminosidade do Sol. Aprendi, assim, a respeitar a natureza desde que era menino. Aprendi a olhar para o tempo e reconhecer suas mensagens: chuva, Sol quente, tempestade, frio, Lua cheia ou minguante. Aprendi a respeitar os passos dos outros seres e a não fazer xixi no igarapé.  

Aprendi a caçar calangos usando armadilhas ou tacape e a flechar pequenos animais a uma distância segura. Também aprendi a tomar banho de chuva, nadar com desenvoltura, esculpir meus brinquedos nas taquaras e nos caroços de manga e andar na mata sempre atento aos sinais de perigo. 

Apesar de tudo o que sabia, sobre escola e sobre amizade confusa nada sabia. Por isso me zanguei quando minha mãe me obrigou a colocar o tal uniforme para ir à escola. “É para você aprender coisas novas”, ela disse. “É para você crescer inteligente”, meu pai disse. “É para você saber mais que nós”, meu tio disse. “É para você ficar civilizado”, meu irmão mais velho ironizou. 

Quem não disse nada foi meu avô, que ficou olhando de longe um tanto desconfiado. Observou tudo o que estava acontecendo e depois riu da roupa que eu estava usando. Não foi um riso de deboche, mas senti como se fosse. Depois compreendi o que se passou na cabeça dele. Ele sabia o que eu iria passar. De qualquer maneira, eu estava animado para aquele momento. Muito já ouvira sobre a escola do branco e me passava pela cabeça uma vontade grande de conhecê-la. Foi com esse espírito que aceitei usar aquele uniforme feio e aqueles sapatos que apertavam meus pés, que, antes, eram livres, inclusive do mau cheiro que depois comecei a sentir. 

Cheguei à escola motivado. Meus pés apertados me faziam andar meio torto. Adentrei o prédio disposto a aprender as coisas dos brancos. Logo de cara, me deparei com um grupo de colegas. Todos eram um pouco parecidos comigo, e senti que poderiam ser meus amigos. Fiquei feliz. No entanto, quando fui me aproximando, um deles apontou o dedo e gritou: “Olha o índio que chegou na nossa escola!!! Olha o índio!”. 

Fiquei olhando para todas as partes procurando o tal índio! Achei que era um passarinho que eu não conhecia! Quando eles viram que eu não sabia do que falavam, começaram a rir de mim. Só depois é que me dei conta de que eles falavam de mim. Pode parecer estranho, mas eu não conhecia aquela palavra “índio”. Eu não sabia que existia alguém que se chamava índio. Meus pais nunca me chamaram assim; meus irmãos, também não; meus outros parentes, idem. 

Era uma palavra que não cabia em meu pequeno vocabulário português. Entendi, então, que meus colegas me deram um apelido. No começo, até achei que era legal ter um, mas depois fui percebendo que por causa dele quase sempre eu era isolado nas brincadeiras, no pátio, na hora do lanche ou nas atividades escolares. Percebi que meu apelido era motivo de piada e minha origem era motivo de chacota. Isso me deixava muito triste. 

O engraçado é que eles se pareciam comigo: tinham cara igual à minha, cabelos lisos como os meus, maçãs do rosto salientes e até pé chato alguns tinham. Por que eles zombavam de mim? Sabem quem me esclareceu? Minha mãe. Quando cheguei em casa e contei o acontecido, ela me colocou entre suas pernas, afagou meus cabelos e disse, sem rodeios: “Eles se acham civilizados, meu filho. Acham que por estarem mais tempo na cidade já aprenderam tudo e podem fazer mal para as outras pessoas. Não ligue para as bobagens que eles dirigem a você. Mas também não se permita ficar como eles. Seja sempre um bom menino e não deixe que um apelido destrua a bondade de seu coração”. 

Mamãe falou isso e me deixou brincar. Não pensei duas vezes e corri para encontrar meus amigos verdadeiros, que moravam na mesma aldeia que eu. Eu tinha quase 9 anos e já sabia: eu nunca gostaria de ser índio. 

Daniel Munduruku

Nasceu em Belém do Pará, em 1964, e cresceu em meio à tribo indígena dos Munduruku. Graduado em Filosofia, tem licenciatura em História e Psicologia. É doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutor em Linguística pela UFSCar. É diretor presidente do Instituto UKA – Casa dos Saberes Ancestrais. Autor de 52 livros para crianças, jovens e educadores, é Comendador da Ordem do Mérito Cultural da Presidência da República desde 2008. Já recebeu diversos prêmios, como o Prêmio Jabuti, o Prêmio da Academia Brasileira de Letras, o Prêmio Érico Vanucci Mendes e o Prêmio Tolerância (Unesco).
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