Montando um comitê antirracista na escola
Estreitar relações e abrir espaços para o diálogo são caminhos para conscientizar alunos e famílias
texto Janine Rodrigues
A construção de um comitê antirracista na escola é um importante passo na implementação de uma educação para esse fim. Por falar nisso, é sempre relevante reforçar que a educação antirracista tem como pilar principal a ação. Pode parecer óbvio, mas não é. Promover uma educação antirracista, na prática, requer comprometimento, intencionalidade, posicionamento, coerência, interesse por conhecer e aprender sobre os temas das relações étnico-raciais, entre outras coisas, mas sendo estas as principais.
Propiciar educação antirracista não é esse “romantismo utópico” muitas vezes presente nas falas de algumas pessoas. Não é fácil, mas é necessário. Não é rápido, porém urgente. Não é simples, porém imprescindível para se ter uma educação equânime, justa para todos e todas.
É preciso compreender que ao fomentar educação antirracista (verdadeiramente), resistências irão surgir dentro e fora da escola. A pressão que o racismo exerce é enorme, permeando diversas áreas — políticas, econômicas, sociais —, ou seja, afeta todas as estruturas, e a escola não está livre disso. É comum que professores sejam podados em seus projetos. É comum que haja interesse em fazer algo que “não fuja da cultura da escola”, sendo esta uma desculpa para um fazer antirracista raso e sem continuidade. É comum que a prática e os discursos estejam distanciados.
Se a escola ainda não tem uma cultura antirracista então a primeira coisa é reconhecer que haverá mudança, e isso assusta, pode criar desconfortos, mas vale ressaltar que estes diminuem com o tempo.
Mas se fomentar educação antirracista na escola é tão desafiador, por onde começar?
O objetivo de trazer todos esses pontos é fortalecer a proposta de algo real, contínuo e comprometido com os impactos positivos. Se, ao considerar tudo isso, a escola compreende que o racismo afeta a sociedade, priva as pessoas de direitos e elimina as possibilidades de uma educação integral e, diante disso, há um desejo genuíno de fazer algo para contribuir com a mudança, então a escola está pronta para montar um comitê.
Um grupo de trabalho dentro da escola será fundamental para elencar questões do dia a dia, da realidade que a escola vive, e, diante disso, fica mais efetivo pensar caminhos. Um ponto importante é: se a escola não tem diversidade étnica, este é um passo importante a ser considerado. Além disso, o trabalho em parceria com pessoas e iniciativas negras é fundamental, afinal, por melhor que você ache que é seu projeto escolar, acredite: você não terá feito um bom trabalho sem pessoas negras construindo com você. Lembre-se de que o letramento racial, elemento orientador neste trabalho, não se constrói do dia para a noite, e ainda que a luta antirracista seja responsabilidade de todos, há um lugar de fala, de pensamento, de vivência que exige a participação ativa de pessoas negras construindo esse processo com a escola.
Ainda que os desafios sejam muitos, é possível ter um trabalho sério e com resultados duradouros se entendimentos cruciais estiverem embasando seu trabalho. No artigo “Quais são os principais desafios para a promoção da diversidade na escola?”, em que é discutida a ideia de inclusão e de representatividade, pode-se observar como esse debate tem crescido. São adicionados aqui também os conceitos de letramento racial, proporcionalidade, empoderamento e lugar de fala, palavras que ficaram, digamos, famosas, mas que muitas vezes são usadas fora de contexto, irresponsavelmente e até esvaziando o discurso sobre os quais esses conceitos se baseiam.
Em um trabalho sério de luta contra o racismo é fundamental o interesse em conhecer a fundo esses temas para então aplicá-los da melhor maneira possível. E por falar em conhecer os conceitos, aqui vão alguns deles:
A escola compreende que o racismo afeta a sociedade, priva as pessoas de direitos e elimina as possibilidades de uma educação integral
Integração e inclusão
A integração refere-se ao ato de “incluir” um grupo minoritário em um grupo social mais geral e amplo. Já a inclusão trata de promover a equidade entre os sujeitos, ou seja, não basta somente que as pessoas compartilhem os mesmos espaços ou acessem as mesmas coisas, mas que isso ocorra de forma efetiva e proveitosa para ela ou ele, compreendendo todas as implicações de sua subjetividade. Vamos supor uma escola que vai receber um aluno surdo e começa a se preparar para isso. Contrata um professor de libras e, quando o aluno chega, ele consegue interagir com o professor. Com o tempo até consegue, aos poucos, interagir também com a turma, que durante a aula começa a aprender libras. Mas e as demais pessoas da escola? Os demais alunos e alunas, demais professores e toda a comunidade escolar? Como esse aluno irá interagir nas atividades da escola? O ideal então é que a escola tenha um plano não para a turma, mas sim para toda a escola. Mobilize inclusive as famílias ressaltando o ensino e a aprendizagem de uma língua considerada em 2002, pela Lei n. 10.436, como meio legal de comunicação e expressão no Brasil.
Melhor e mais eficaz seria se a escola, ainda que não tenha alunos surdos, pudesse contar com o ensino de libras.
Vamos fazer esta mesma reflexão para as questões raciais. O racismo, que afeta toda a sociedade, é o maior mal social no Brasil, reconhecidamente o principal motivo para reduzir a qualidade de vida das pessoas negras, que são 56% da população.
Podemos então refletir: Como minha escola está promovendo uma educação antirracista?
Representatividade e Proporcionalidade
Quando uma pessoa negra, de qualquer idade, liga a TV e vê um personagem, um apresentador, um desenho com pessoas pretas, ela se sente representada. Quando nas universidades, nos cargos de liderança, nas ciências há gente negra, há o sentimento de representação. Mas para além disso é urgente refletir sobre proporcionalidade porque é um grande problema quando a representatividade é usada como disfarce. Explicando: pense num corpo docente em que nenhuma das pessoas é negra. Pense que a escola decide então criar uma medida de educação antirracista contratando um professor ou um inspetor negro e, pronto! A escola acredita que cumpriu seu papel, afinal agora o corpo docente tem representatividade. Esta é uma ideia muito enviesada do que é representatividade e demonstra uma falta de comprometimento com a proporcionalidade. De quantas pessoas é composta a equipe da escola? Quantos diretores, professores e professoras, coordenadores, técnicos etc.? Em cada um desses grupos, qual é a proporção entre pessoas negras e não negras?
A Relação Entre Letramento Racial, Empoderamento e lugar de fala
Se o letramento trata do resultado da ação de ler e escrever compreendendo a língua como importante elemento das práticas sociais, ou seja, não somente ler e escrever de maneira descontextualizada, mas sim compreendendo que o uso da língua, da palavra, afeta e é afetada pelas práticas sociais, o letramento racial, por sua vez, é a necessidade de desconstruir, desarticular as formas racistas de pensar e agir que foram naturalizadas em nossa história.
Por isso o letramento racial é fundamental para o empoderamento, que não é feito para alguém, mas é a própria pessoa que se empodera, ou seja, o meio no qual ela está inserida é saudável o suficiente para que a pessoa exerça o poder de ser, o poder de pensar, o poder de criar, o poder de agir, dentre outros.
Logo, não posso empoderar você, mas empodero a mim mesmo num meio propício para isso. O que posso fazer é contribuir para que esse meio seja favorável para que você se empodere também. É isso que a educação antirracista, com o devido letramento racial, faz: cria possibilidades para que pessoas negras se empoderem. É também dentro de um letramento racial e uma educação antirracista que compreendemos profundamente a importância do que é o lugar de fala.
Ao contrário do que se possa imaginar, lugar de fala não tem relação com o fato de uma pessoa poder ou não falar sobre um tema, como o racismo. Lugar de fala trata de uma consciência e intencionalidade de reconhecer quem é o interlocutor e de onde ele fala, ou seja, qual seu lugar na sociedade; qual lugar ele ou ela ocupa e, a partir disso, de onde ele ou ela está falando. Com base nisso, o que esse interlocutor diz será ouvido de modo mais específico, atento. Em relação a uma pessoa negra, uma pessoa branca fala de um lugar privilegiado no que se refere às mazelas do racismo. Então, quando uma pessoa branca se posiciona ativamente contra o racismo, entender que o lugar de fala dela é um lugar de privilégio pode mobilizar muitas pessoas na causa, pois justamente pelo fato de ela estar nesse lugar sua voz tem um alcance que nem toda pessoa preta tem.
No entanto, pensar um projeto educacional com pouca ou nenhuma participação efetiva de pessoas negras é inviabilizar o lugar de fala dessas pessoas que, além de sofrerem com o racismo, ficam impossibilitadas de estar no lugar de construção nesse processo. Para além disso a educação antirracista não trata só de falar das implicações do racismo, mas construir espaços de saber que visibilizam a intelectualidade, a cultura, os fazeres das populações negras, tanto as afro-brasileiras quanto as africanas, para que se tenha um novo modo operacional de pensar e agir.
E agora partindo para pontos práticos, serão compartilhados passos importantes que podem ajudar sua escola no caminho de construção de um comitê antirracista:
- Ouça os professores e professoras: O que eles e elas têm a dizer sobre o assunto? Como acreditam que esse trabalho pode acontecer? Como se sentem para falar do assunto?
- Conte com aliados no processo: De livros a cursos, formações, projetos, programas, existem possibilidades muito ricas para que sua escola possa aprender com pessoas (principalmente educadores negros) a construir este trabalho.
- Se sua escola já tem diversidade étnica, ótimo. Se não tem, precisa. Estamos no Brasil, mas existem escolas que, ao entrar, nos sentimos na Noruega. Uma escola diversa e preocupada com a justiça social precisa se incomodar se não enxerga crianças pretas, brancas, PCDs e demais diversidades no espaço. Se a escola tem diversidade étnica, cuidado para não atribuir apenas aos professores negros a responsabilidade de trabalhar este assunto, pois isso é racismo. Esperar que seja responsabilidade da pessoa negra do grupo falar de antirracismo é racismo. Este é um tema que deve ser trabalhado por todos e todas, com a participação de pessoas negras que se sentem preparadas para isso. O racismo é uma violência vivida por pessoas negras e nem todas têm condições emocionais de falar sobre isso. Então atente para a maneira como essas ações estão sendo conduzidas na sua escola.
Lugar de fala não tem relação com o fato de uma pessoa poder ou não falar sobre um tema, como o racismo. Lugar de fala trata de uma consciência e intencionalidade de reconhecer quem é o interlocutor e de onde ele fala , ou seja, qual seu lugar na sociedade; qual lugar ele ou ela ocupa e, a partir disso, de onde ele ou ela está falando.
Novembro é o mês em que quase toda escola resolve falar sobre racismo, cultura negra, culturas africanas etc. É importante celebrar novembro, as conquistas, refletir sobre os desafios, mas e o restante do ano? Sabe aquela feira de ciência? Aquele debate? Aquela exposição artística? Há pessoas negras ou o único lugar de onde as pessoas negras podem falar é o lugar cujo tema é especificamente racismo, ou o lugar exótico das culturas negras e africanas?
Pense em quais leituras e demais estudos podem ser feitos e em que momento serão trabalhados. Os educadores e educadoras precisam de tempo, dentro da carga horária de trabalho, para estudar esses assuntos. A escola deve investir nesses estudos. Fazer projeto, criar evento é bom e importante, mas tudo isso deve andar equilibradamente com os estudos sobre o assunto.
Com relação a projetos continuados, o comitê precisa pensar nos desdobramentos das ações e sempre ter em mente que estas precisam ser contínuas. Fazer um bate-papo uma vez no ano, adotar um livro com personagem negro, fazer uma oficina em novembro, por si sós, não tornam sua escola antirracista. Ter um plano, fazer dele um projeto, implementar, acompanhar, avaliar, melhorar e seguir neste ciclo é o que pode tornar sua escola verdadeiramente antirracista.
Janine Rodrigues Escritora, educadora, especialista em diversidade e fundadora da Edtech Piraporiando (Educação com afeto para a diversidade).
Para saber mais
- Thaís, M. (2022, maio). Quais são os principais desafios para a promoção da diversidade na escola? Piraporiando. Disponível em: mod.lk/ed23_con. Acesso em: 26 set. 2022.