Pacto pelo futuro
Lançado pela ONU em 2000, o Pacto Global busca engajar empresas e organizações no desenvolvimento sustentável, atuando em 170 países, com 20 mil participantes.
O Brasil possui a terceira maior rede, com 1.600 participantes. Para vencer esse desafio,
a educação é fundamental.
texto Paulo de Camargo
Por muito tempo, a preocupação com o tema do desenvolvimento sustentável e do amplo arco de valores inseridos no campo do ambiente, dos direitos humanos, do trabalho e do enfrentamento da corrupção estava restrita a grupos engajados, como ativistas e organizações não governamentais, e a movimentos pontuais de responsabilidade social. O mundo mudou, e o agravamento incessante desses desafios planetários passou também a ser uma pauta das empresas. Assim nasceu, em 2000, o Pacto Global da Organização das Nações Unidas (ONU), que reúne empresas comprometidas com um conjunto de 10 princípios ligados aos direitos humanos e à agenda ambiental.
O Pacto Global foi lançado pelo então Secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, partindo do princípio de que a difusão das boas práticas corporativas era uma forma de acelerar mudanças profundas na sociedade por meio das relações produtivas.
Não se trata de instrumentos regulatórios externos ou de códigos de condutas e fóruns para fiscalizar práticas empresariais, mas de um movimento voluntário das empresas para contribuir com a construção de um mundo sustentável, com direitos sociais respeitados e relações justas.
Além de assumir o compromisso em seguir os 10 princípios (veja quadro 1), os integrantes do Pacto Global reconhecem também a responsabilidade de trabalhar pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), a chamada 2030.
Hoje, o Pacto existe em 170 países, com 20 mil participantes. O Brasil possui a terceira maior rede global, com 1.600 participantes, e ganha força crescente.
Para conhecer mais sobre essa iniciativa, Educatrix ouviu a psicóloga Gabriela Rozman, mestre em Psicologia Social e Cultural pela London School of Economics e gerente de conhecimento do Pacto Global. Como movimento social e de grande relevância, deve também ser conhecido pelas instituições educacionais — que, afinal, também são organizações —, até porque tudo remete à Educação.
Educatrix | Como atua o Pacto Global e quais são as ênfases do trabalho realizado? Gabriela Rozman: O Pacto Global é uma rede que tem por objetivo influenciar as empresas a seguirem os 10 princípios que norteiam o programa, ligados aos direitos humanos, ao desenvolvimento sustentável, às relações de trabalho e ao enfrentamento da corrupção. Entre as diversas iniciativas que desenvolvemos, lançamos neste ano [2022] a Ambição pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), um chamado urgente para que as empresas estabeleçam metas mais ambiciosas nessas áreas (veja pág. 16). Assim, temos o movimento Elas Lideram (relacionado a gênero); Mente em Foco (à saúde mental), Raça é Prioridade (a ações antirracistas), Ambição Net Zero (às questões climáticas), Transparência 100% (à anticorrupção) e o movimento Mais Água (com o tema do uso racional desse recurso). O movimento estabelece as metas e, quando as empresas aderem, automaticamente se comprometem a atingi-las. Para isso, oferecemos apoio em várias áreas, como formação, treinamentos, projetos, eventos e possibilidade de troca de experiências para que de fato avancem.
Existe o hoje conhecido termo greenwashing, lavagem verde, para designar empresas que apenas falam, mas não fazem — ou seja, são sustentáveis apenas do ponto de vista do marketing.
Educatrix | Existem formas de avaliar e comprovar, de fato, os avanços, ou as empresas reportam por si mesmas o que foi feito? Rozman: Existem métricas globais. Por exemplo: no movimento Elas Lideram 2030, a meta é atingir 50% de equidade de gênero nas empresas. As empresas que aderem ao Pacto se comprometem com essa meta e anualmente vamos mensurar se estão cumprindo.
Educatrix | E como é possível saber se as metas estão sendo cumpridas? As empresas fornecem os dados ou vocês também realizam pesquisas? Rozman: Em parte, as informações prestadas são autodeclaratórias. Uma vez que integram a rede, as empresas precisam anualmente responder a um formulário, chamado COP (Comunication Oficial Program), mostrando que estão avançando. Mas temos também o Observatório 2030. Trata-se de uma plataforma de monitoramento de dados públicos pelo qual analisamos uma amostra de 82 empresas, coletando os dados nos Relatórios de Sustentabilidade publicados periodicamente em seis categorias: clima, gênero, corrupção, salário digno, saúde mental e água. O Observatório oferece também estudos e pesquisas mais aprofundados sobre as oportunidades e desafios do setor empresarial para o desenvolvimento sustentável do país. Dessa forma podemos ver o quanto estamos evoluindo em relação às metas. Verificamos, por exemplo, que apenas 15 das 82 empresas pesquisadas reportam dados das questões raciais. Isso, por si só, já é relevante. Se estamos falando tanto de desigualdade, como apenas 15 empresas estão relatando?
Educatrix | Na educação, no campo da educação para a sustentabilidade, sempre existe o desafio de vencer a distância entre a teoria e a prática, entre o discurso e o mundo real. Vocês vivem esse desafio também entre as empresas? Rozman: Sim, com certeza. Existe o hoje conhecido termo greenwashing, lavagem verde, para designar empresas que apenas falam, mas não fazem – ou seja, são sustentáveis apenas do ponto de vista do marketing. Este é um problema extremamente grave. Quando as empresas apenas são sustentáveis no plano do marketing, certamente a sustentabilidade não está em sua estratégia de negócio. O maior desafio para todas as empresas é justamente colocar os planos de sustentabilidade em suas estratégias. Há muitas empresas que querem fazer, estão buscando avançar, agindo em rede, mas também existem aquelas que apenas falam, e não estão buscando mudar. Ocorre que hoje existe uma pressão social muito forte sobre essas marcas. Existe uma fiscalização por parte do Pacto Global, sim, mas também da própria sociedade civil, que não deixa barato.
Educatrix | O Pacto Global ajuda as empresas a vencer o dilema da implementação? Rozman: Temos uma metodologia, denominada Compass — Diretrizes para implementação dos ODS na estratégia dos negócios — que justamente busca orientar as empresas sobre como contribuir com os ODS. Trata-se de uma metodologia de 5 passos, que são: Entendendo os ODS, Definindo Prioridades, Estabelecendo Metas, Integração e Relato, e Comunicação. A fase mais complexa é a integração. Este é o momento de integrar todas as áreas da empresa. Você pode criar um plano lindo, o desenho pode ser perfeito, mas no momento de implantá-lo estrategicamente, com objetivos e métricas, o desafio é fazer acontecer.
Educatrix | Como vocês conseguem que uma empresa toda seja aderente às metas do Pacto e não apenas algumas pessoas façam esse esforço. Rozman: Em primeiro lugar, para que uma empresa manifeste sua intenção de aderir ao Pacto é necessária a assinatura de um CEO. Isso acontece em diálogo com a equipe de sustentabilidade, RH, Marketing, entre outras. Claro, toda organização trabalha para engajar seus membros nas plataformas de ações, nos eixos temáticos, mas existe um esforço conjunto, com reuniões, projetos, treinamentos, eventos. Estimula-se a troca de práticas, discutem-se ferramentas de diagnóstico e de projetos, enfim, existem meios pelos quais a gente engaja os membros do Pacto.
Educatrix | Como você avalia a importância das lideranças nesse processo? Rozman: O líder é o responsável por preservar essa geração de valor, quando define o que espera da empresa. E, claro, seu papel é essencial porque ele é o tomador de decisão. Então, quanto mais conseguimos chegar nas lideranças para convencer, influenciar, mostrar como aquilo é relevante para o negócio, mais teremos possibilidade de engajar a empresa para que o avanço aconteça. Entendemos ser muito importante chegar à liderança para sensibilizá-la, como também para levar a empresa a avançar.
10 princípios do Pacto Global
- Direitos Humanos
1. As empresas devem apoiar e respeitar a proteção de direitos humanos reconhecidos internacionalmente.
2. Assegurar-se de sua não participação em violações desses direitos.
- Trabalho
3. As empresas devem apoiar a liberdade de associação e o reconhecimento efetivo do direito à negociação coletiva.
4. A eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou compulsório.
5. A abolição efetiva do trabalho infantil.
6. Eliminar a discriminação no emprego.
- Meio Ambiente
7. As empresas devem apoiar uma abordagem preventiva aos desafios ambientais.
8. Desenvolver iniciativas para promover maior responsabilidade ambiental.
9. Incentivar o desenvolvimento e a difusão de tecnologias ambientalmente amigáveis.
- Anticorrupção
10. As empresas devem combater a corrupção em todas as suas formas, inclusive extorsão e propina.
Educatrix | Por tudo o que foi apresentado aqui, o papel da Educação parece ser central, não é? Rozman: A educação corporativa está no centro do Pacto. Nós estimulamos as empresas a se engajarem em agendas de sustentabilidade. Precisamos levar a todas elas conhecimento a respeito do que se está falando, do que devem fazer para esse avanço acontecer. Por exemplo, trabalho escravo e infantil. O que é? Como se detecta? O que a empresa tem a ver com isso? O que ela pode fazer para prevenir, mitigar, erradicar? Então, temos esse esforço de educação para que as empresas entendam seu papel frente às temáticas da sustentabilidade e se mobilizem. Temos ações de educação corporativa tanto nos níveis mais operacionais, com os diferentes níveis de gestão, como com CEOs, por exemplo, promovendo mesas de debate. Não fazemos consultoria, mas temos iniciativas dentro das empresas, envolvendo um conjunto de serviços e produtos, como treinamentos in company.
Educatrix | Como são captados novos membros para o Pacto? Existem instituições educacionais participantes? Rozman: Sim, existem diversas instituições de ensino superior e universidades, entre elas a Fundação Getulio Vargas, a Fundação Dom Cabral, o Insper, a Universidade de São Paulo, universidades estaduais e federais também. Ainda não temos escolas de educação básica. Para aproximar novas organizações, há um trabalho árduo, que vai desde comunicar o que o Pacto Global faz, um trabalho de formiguinha mesmo: ligar, conversar, marcar reuniões... Algumas vezes, uma empresa demora meses para aderir. Fazemos pesquisas para entender quais são as necessidades de cada corporação, temos pessoas especializadas para isso. Procuramos mostrar que há um imperativo moral, ou seja, a empresa precisa agir para melhorar o mundo, e que o engajamento é uma necessidade para o próprio negócio. As empresas precisam entender que nenhuma organização se sustenta em um planeta em crise climática, ambiental, e que países pobres não têm consumidores.
Educatrix | É mais correto dizer que as empresas estão interessadas ou que são resistentes? Há receptividade? Rozman: Há diferentes perfis. Como membros, há empresas mais atuantes e outras menos. Entre aquelas que participam bastante, as mais engajadas, vemos que há interesse real em entender como podem fazer para contribuir com essa agenda sustentável. Para isso, precisam de informação para mudar a estratégia de seu negócio, para que sejam mais sustentáveis e para que possam contribuir para a transformação em direção a um planeta mais sustentável, uma sociedade mais justa. Essas empresas querem saber como engajar seus funcionários para que caminhem juntos, efetivamente promovam a transformação. Empresas, afinal, são pessoas.
Conheça os movimentos Ambição 2030, desenvolvidos pelo Pacto Global
- Movimento Elas Lideram 2030
O movimento quer ajudar as empresas a assumirem metas concretas pela equidade de gênero: ter mais de 1.500 empresas comprometidas, promover 11 mil mulheres para cargos de alta liderança até 2030 e ter pelo menos 150 lideranças de alto nível engajadas com essa ambição.
- Movimento + Água
É uma iniciativa para aceleração da universalização do saneamento e segurança hídrica do Brasil, o que vai impactar a vida de mais de 100 milhões de pessoas. Propõe maior controle, transparência e ações coletivas, defendendo a definição de metas como uma maneira de impulsionar as empresas com vantagem competitiva na transformação da sociedade para a universalização do saneamento e a segurança hídrica.
- Movimento Salário Digno
Tem a ambição de garantir 100% de salário digno e engajar toda a cadeia de suprimentos para desenvolver metas de salário digno. Promover e fornecer um salário digno como um aspecto essencial do trabalho decente é a garantia de que os(as) trabalhadores(as), suas famílias e comunidades possam viver com dignidade.
- Movimento Raça é Prioridade
Quer atingir mais de 1.500 empresas comprometidas, para promover mais de 15 mil pessoas negras (negras, indígenas, quilombolas ou pertencentes a outro grupo étnico socialmente vulnerável) em cargos de liderança até 2030, mais de 20 mil pessoas negras capacitadas em soft e hard skills; diminuição do gap de remuneração entre os grupos étnico-raciais socialmente vulneráveis e brancos; e mais de 150 lideranças influenciadoras de alto nível engajadas com essa ambição.
- Movimento Ambição Net Zero
Colabora para a redução de 2 giga toneladas de CO2 e em emissões acumuladas. O movimento ambiciona trabalhar localmente com reduções de emissões de gases de efeito estufa para impactar a sociedade brasileira e o meio ambiente global.
- MovimentoTransparência 100%
Tem o objetivo de desenvolver instituições eficazes, responsáveis e transparentes em todos os níveis, encorajando e capacitando as empresas para ir além das obrigações legais, fortalecendo mecanismos de transparência e integridade.
- MovimentoMente em Foco
O movimento é uma forma de trazer para o centro das decisões a pauta da saúde mental, estimular a discussão sobre o tema, estabelecer ações concretas e de suporte aos seus colaboradores e criar um ambiente de trabalho saudável.
Educatrix | O trabalho desenvolvido pelo Pacto Global da ONU se baseia em documentos universais, como a Declaração dos Direitos Humanos, não é? E existem outros específicos? Rozman: Sim, nós nos baseamos nessa documentação das Nações Unidas, bem como em outras específicas, que podem ser consultadas por quem se interessar. A ONU produziu os Princípios Orientadores dos Direitos Humanos em Empresas, e nosso trabalho é influenciar as empresas para que os sigam. Tudo o que fazemos é baseado neles. Pouca gente conhece e muitos querem saber mais. Nesse processo, promovemos formação, educação e a troca de experiências que deram certo ou que não funcionaram. Além disso, participamos de eventos internacionais, para os quais levamos representantes das empresas para relatarem o que estão fazendo, os desafios, os avanços.
Educatrix | Você mencionou que o Pacto Global está em 170 países e que o Brasil participa de eventos internacionais. Nesses encontros, vocês percebem que há semelhanças com os desafios de outros países? Rozman: Podemos pensar que empresa é empresa em qualquer lugar, e o objetivo continua sendo gerar lucro para os acionistas. Mas os desafios de outros países não são tão semelhantes aos nossos. Há cultura empresarial dentro de cada país, enfim, a maneira como trabalhamos aqui é diferente do que na Inglaterra, por exemplo, bem como as formas de mostrar qual é o papel das empresas e sua responsabilidade social. De forma geral, há expectativa que o Brasil priorize duas questões: as mudanças climáticas e a igualdade de gênero. Do ponto de vista da ONU, não vai haver avanço social e econômico sem o enfrentamento dessas questões. No Brasil, há ainda questões muito graves de desigualdade social, que buscamos endereçar também no Pacto.
Educatrix | As empresas que integram o Pacto Global também se comprometem a trabalhar pelo alcance dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Vocês trabalham na perspectiva de todos os ODS ou de alguns em especial? Rozman: Temos trabalhado prioritariamente sobre os ODS de número 6 (Água Potável e Saneamento), 13 (Ação contra a Mudança Global do Clima), 14 (Vida na Água), 16 (Paz, Justiça e Instituições Eficazes) e Direitos Humanos, que é um tema transversal e está presente em 94% da agenda. Mas o trabalho do Pacto Global não se esgota em 2030, até porque provavelmente não chegaremos aonde queremos. Está acontecendo um retrocesso imenso dos indicadores e metas. Tudo indica que em 2030, que é daqui a pouco, ainda vamos estar em busca de cumprir essa agenda, e provavelmente as Nações Unidas vão construir um novo arcabouço de trabalho.
Gabriela Rozman é formada em Psicologia pela PUC/SP com mestrado em Psicologia Social e Cultural pela London School of Economics (LSE). Atuou no setor privado com Programas de Desenvolvimento e na consultoria de sustentabilidade Globescan. Agora no Pacto Global, tem como missão promover conhecimento sobre os ODS e capacitar indivíduos e organizações na direção da Agenda 2030.