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A sala de aula como contação de histórias

“Mar de Histórias” é a expressão usada em sânscrito (Kathâsaritsâgara) para se referir ao universo das narrativas. Ao transitar por rotas imaginárias, lembre-se da metáfora do mar: é preciso ter um caminho e manter um leme firme, mas é essencial saber que as águas podem ser muito tranquilas, mas também se transformar em verdadeiros maremotos. Esta é a aventura literária da qual fazem parte o mestre e seus alunos: é preciso coragem para trafegar por mundos imaginários, porém, as viagens serão sempre cheias de descobertas.

Texto Julci Rocha

Ilustração: Ricardo Davino

A capacidade de imaginar, de pensar simbolicamente e comunicar nossos pensamentos é uma característica exclusiva da nossa espécie. Os seres humanos contam histórias desde sempre; é uma forma ancestral de partilhar conhecimentos às novas gerações. Por isso, a força que uma boa história exerce sobre nós é inegável.

Volta e meia temos lembranças saudosas das histórias que ouvimos na infância, seja em casa ou na escola, assim como guardamos carinhosamente na memória como foi a primeira leitura literária, ou nos vemos diante de uma enorme dificuldade para interromper um bom livro, cuja narrativa nos prende de uma forma muito envolvente.

O contar histórias, ou storytelling em inglês, historicamente, sustentou-se de maneira fundamental como uma arte lúdica e um poderoso instrumento de formação da identidade cultural e socioafetiva dos sujeitos. Além de oferecer entretenimento, a contação de histórias nos permite conhecer, imaginar e refletir sobre a vida e as relações e, dessa forma, construir uma visão de mundo.

Um povo que escuta, conta e reconta as mesmas histórias possui valores e visões semelhantes, já que tais elementos são frutos da acumulação de fatos que determinada nação tem como verdade. Daí a importância que uma boa história possui para criar em nós uma sensação de pertencimento ao grupo e de identificação com o coletivo. Essa junção de histórias, valores e visões de mundo geram o “nós”, que não existe sem o “eu” e o “outro”.

A contação de histórias é fonte de comunicação, apropriação e disseminação de conhecimentos, bem como um veículo de registro dos seres humanos no mundo. É na criação e na contação de histórias, derivadas de registros orais e escritos, que nós, humanidade, encontramos um dos mais eficientes modos de difundir nossos pensamentos e de imprimir nossas marcas.

O termo storytelling

Se a contação de histórias é originalmente uma antiga arte humana de troca de experiências, realizada por diferentes povos, em diferentes tempos e espaços, por que o termo em inglês storytelling soa relativamente novo?

Embora para muitas pessoas o conceito de storytelling pareça novo, o hábito milenar ganhou espaço como ferramenta estratégica no mundo dos negócios, sobretudo na década de 1990. Nesse período, a publicidade e a comunicação precisavam inovar para causar impacto: numa era altamente tecnológica, tornou-se essencial incorporar às estratégias de marketing elementos que gerassem empatia e maior conexão com as pessoas, além de dar mais destaque às marcas. É assim que o storytelling passa a preencher vazios de ferramentas desgastadas para reter a atenção do público e dá novos contornos à comunicação.

Na década de 1990, o storytelling passa a ser amplamente estudado nos Estados Unidos como estratégia de comunicação. À época, os fundadores do Center for Digital Storytelling desenvolveram um processo único de treinamento e artes digitais, com forte colaboração da multimídia teatral, conhecido como o Digital Storytelling Workshop. (LAMBERT, 2020)

Desde então, houve também a fundação do Storycenter, que estuda e dissemina as metodologias que ajudam na construção de uma boa história. Assim, o termo Digital Storytelling ganha mais espaço com a prática sendo apresentada a empresas e instituições, em âmbito mundial.

O hábito de contar histórias por meio de pinturas, ao redor da fogueira ou numa roda de histórias na escola permanece, mas a intenção da sua criação, a capacidade de informá-las e distribuí-las mudou significativamente com a sua publicização nas mídias sociais como produto.

O que nos interessa aqui é que o storytelling é uma estratégia rica em elementos da narrativa cuja estrutura é muito viva para a nossa sociedade e, portanto, diante do atual cenário educacional, sua apropriação na esfera pedagógica torna-se indispensável.

De Aristóteles a Campbell:
para além do “era uma vez”

Contar uma história não é algo banal, assim como não é qualquer pessoa que cria uma história ou faz uma contação de forma eficaz. As narrativas pautadas no storytelling seguem uma estrutura específica de apresentação dos fatos. É possível criar histórias a partir de diferentes temas, reais ou fictícios, desde que arranjados na ordem correta e que, com eles, se saiba fazer uma boa costura.

O storytelling como o conhecemos está pautado nas seis partes constitutivas da tragédia aristotélica: enredo (mythos), caracteres (ethe), elocução (lexis), pensamento (dianoia), espetáculo (opsis) e música (melopoiia), encontrados no livro Poética (aristóteles, [1965] 2008, p. 13), em que se apresentam as primeiras teorizações sobre narrativas. Veja a seguir:

Além dos elementos citados, a ambientação ou o ambiente físico em que as personagens atuarão merece destaque. A narrativa eficaz não ignora o cenário, já que, muitas vezes, ele fortalece as interações entre os personagens, nos conta sobre motivações e comportamentos, bem como caracteriza oportunidades ou obstáculos presentes na trama.

Assim como na estrutura narrativa aristotélica, os elementos de uma história são facilmente reconhecidos tanto na tradição oral, quanto no romance moderno ou no cinema. Como são intrínsecos a nossa cultura, é algo que cativa. Por isso, é praticamente impossível nos depararmos com estudos de storytelling que não tenham base em Aristóteles.

No mundo contemporâneo, os roteiros de storytelling estão pautados no conceito da Jornada do Herói ou Monomito, de Joseph Campbell. O antropólogo, por meio de amplos estudos de mitos e lendas, encontrou um padrão repetido nas narrativas de diferentes povos. Esses estudos foram publicados no livro O herói de mil faces, amplamente popular por volta da década de 1980.

A seguir, temos uma síntese das doze etapas da jornada do herói de Campbell, que sustentam aquilo que o autor chamou de mito único ou monomito:

Segundo Campbell, o caminho comum da aventura mitológica é representado pela sequência: partida > iniciação > retorno.
O herói começa sua aventura de mundo cotidiano em direção a uma região de maravilhas sobrenaturais, enfrenta forças fabulosas e consegue uma conquista decisiva. Ao final, ele retorna de sua emblemática aventura com uma força descomunal, com a capacidade de ofertar a seus irmãos diferentes mimos, sonhos, esperanças e materialidades.

Em 1998, Christopher Vogler, então roteirista da Disney, redigiu um memorando intitulado Um guia prático para o herói de mil faces, como base para a construção de um método de estrutura narrativa. Nele, o autor descreve “[…] o conjunto de conceitos conhecido como “Jornada do Herói”, extraídos da psicologia profunda de Carl G. Jung e dos estudos míticos de Joseph Campbell”.

O guia, conhecido como a Jornada do Escritor, tenta relacionar as ideias dos autores às narrativas modernas e expõe doze etapas em que facilmente observamos os elementos das estruturas vistas anteriormente:

Apesar de ter escrito um guia, Vogler sempre fez questão de destacar que se trata de uma forma, não uma fórmula. Portanto, partimos do princípio de que as histórias têm forma, têm fórmula e intencionalidade; têm começo, meio e fim e, até mesmo essa clássica tríade, a depender do autor, pode variar.

Como reconhecer as etapas do storytelling numa obra

Até aqui, pudemos conhecer a constituição conceitual, histórica e metodológica do storytelling. Para facilitar a compreensão da estrutura narrativa, mostramos esquemas com uma facilitação visual que aborda o que vimos de forma prática.

Um exercício muito proveitoso, que nos ajuda na apropriação dos conceitos, é analisar determinada obra e enquadrá-la numa lógica narrativa. A seguir, fizemos uma análise básica do filme Pantera Negra, dividindo-o nos três atos previstos por Vogler (2006).

Que tal você escolher uma obra de sua preferência e fazer esse exercício? Você pode usar quaisquer dos esquemas apresentados ou ampliar suas pesquisas sobre as jornadas e visualizar a narrativa dentro das etapas. Depois disso, sua vida nunca mais será a mesma!

O potencial educativo do storytelling:
O professor como storyteller

Se você é professor, já é um contador de histórias! Ser professor envolve, mesmo que indiretamente, atuação e dramaticidade, assim como um planejamento pedagógico que tem um conteúdo a ser narrado, com começo, meio e fim. Portanto, o Storytelling está presente nas salas de aulas, mesmo fora dos momentos de contação de histórias.

Quando nós, professores, priorizamos aulas que engajam as pessoas, as convidamos a se envolverem de diferentes formas, seja na contação da fábula A cigarra e a formiga, seja numa aula sobre o impacto do CO2 na atmosfera ou a forma como se aplica a fórmula de Bhaskara na vida real. Numa “aula contada”, chamamos os envolvidos a contribuírem com perguntas e respostas, fazerem sugestões, acrescentarem ideias, tudo para que compreendam e se apropriem dos conceitos apresentados e construam novos conhecimentos.

Desenvolvemos aulas com um conjunto de técnicas características da estrutura das narrativas. Para tanto, trazemos ilustrações, elaboramos um cenário — mesmo que apenas narrado —, alternamos o tom e intensidade da nossa fala, andamos pela sala, gesticulamos, fazemos caras e bocas, e interagimos com os alunos, esperando deles atenção e encantamento. Não raro, as aulas ministradas com esse foco viralizam, tornam-se inesquecíveis, tal como as mais conhecidas histórias!
Envolver os estudantes por meio do storytelling acrescenta valor ao trabalho pedagógico, que se torna dialógico, criativo e humanizado. Com ele, é possível:

► ampliar os espaços para rodas de conversas e interações;
► auxiliar o estudante a dar sentido e a buscar novas leituras;
► incentivar o aluno a fazer releituras e criar suas próprias histórias;
► estimular o exercício espontâneo da escrita;
► desenvolver a escuta ativa;
► despertar o desejo de interpretar textos e dramatizar ideias;
► incentivar a expressão e comunicação oral;
► desenvolver um trabalho de qualidade, com resultados positivos, independentemente do nível de escolaridade.

Utilize o storytelling como uma prática educomunicativa para comunicar soluções, ideias e proposições. Ao colocar os estudantes diante de uma situação-problema, eles podem esboçar uma ideia, registrá-la, construir uma personagem para contar a história, mostrando, dentro de uma estrutura narrativa, a saga do herói na implementação da solução que encontraram. Para isso, precisam se perguntar: de que forma vamos comunicar a ideia? Com quais instrumentos? Quem é quem nessa produção? Que jornada é essa?

Obviamente, dada a diversidade do universo narrativo, não há uma fórmula absoluta para o desenvolvimento da arte de contar histórias. No entanto, como vimos, há um padrão que pode ser seguido, cujas etapas devem ser adaptadas, tornando factível a possibilidade de criação de uma história única.

A contação de histórias, portanto, é uma estratégia pedagógica diferenciada e, uma vez em sintonia com a realidade da turma, suas necessidades e expectativas de aprendizagem, suas temáticas de interesse e, principalmente, suas potencialidades, otimiza o processo educativo de maneira lúdica e emancipatória.

Já que ensino e aprendizagem caminham juntos, a contação de histórias exerce um papel fundamental no desenvolvimento intelectual e de humanização de educador e educando. Ao despertar o interesse pela leitura e escuta de textos, ao contar um conteúdo e ao provocar os estudantes a criarem suas narrativas, a imaginação é acionada, favorecendo o desenvolvimento da comunicação e de interação entre narrador e espectador. Como consequência, surge uma interação sociocultural que, por vezes, resulta no intenso e imediato interesse de ouvir e recontar histórias para o mundo a fim de preservá-lo e transformá-lo.


Julci Rocha
é fundadora e diretora da Redesenho Educacional. Mestre em Educação: Currículo pela PUC/SP, pós-graduada em gestão educacional, design educacional e educação inovadora. Licenciada em Letras pela USP. Integra o time de docentes da pós-graduação e extensão do Instituto Singularidades. Tem experiência em gestão de programas inovadores em redes públicas e privadas, com experiência em instituições importantes como Instituto Paulo Freire e Fundação Lemann. Atua na formação inicial e continuada há 10 anos, com destaque para as metodologias ativas e cultura digital.

PARA SABER MAIS

  • ARISTÓTELES. Poética [1965]. Lisboa: Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.
  • CAMPBELL, J. O herói de mil faces. Tradução de Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Pensamento/Cultrix, 1989.
  • CAMPBELL, J. Os primeiros contadores de histórias. História e antropologia, 2005, v. 6 fev.-jul. 2015. Disponível em: mod.lk/0VtkK. Acesso em: 9 jul. 2020.
  • LAMBERT, J.; HESSLER, B. Digital storytelling: story work for urgent times. 6. ed. Berkeley: Paperback, 2020.
  • PIETRO, H. Quer ouvir uma história? Lendas e mitos no mundo da criança. São Paulo: Angra, 1999.
  • VOGLER, C. A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores [1998]. Tradução de Ana Maria Machado. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
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