Por uma escola que valorize o empreendedorismo antropológico
Preparar cidadãos mais críticos, participativos e produtivos na sociedade do século XXI começa na Educação Básica
Texto: Luciana Allan | Ilustração: Lucas Wakamatsu
Segundo pesquisa do LIDE Futuro, 80% dos jovens querem empreender em 10 anos. Outro estudo da Endeavor indica que, em cada quatro brasileiros, três sonham em empreender – é a segunda maior taxa do mundo. No entanto, apenas 9% se preparam atualmente para começar seu negócio, índice que sobe para 20% na Argentina e 43% no Chile.
Apoiador da ideia de estar preparado para empreender, Tibor Navracsics, atual comissário da União Europeia para a Educação, Cultura, Juventude e Desporto, defende que os sistemas de educação e formação básica da Europa devem dar às pessoas de todas as origens as competências certas para progredir e prosperar profissionalmente, mas também para serem cidadãos engajados e participativos em suas comunidades.
Ao me deparar com os dados do LIDE, Endeavor e a fala de Navracsics, com a qual compactuo, eu me senti estimulada a compartilhar com vocês os primeiros passos de um novo conceito que venho elaborando: o empreendedorismo antropológico.
Há alguns anos, pesquiso e fomento a educação empreendedora que, ao contrário do que muitas pessoas pensam, não visa puramente formar pessoas capazes de empreender no futuro e ter seu próprio negócio. Mais que isso, seu objetivo é estimular nas crianças e adolescentes competências natas dos empreendedores, que também são fundamentais para o desenvolvimento integral dos seres humanos, tais como autoconhecimento, autogestão, empatia, resiliência, criatividade, uso de tecnologias digitais, autorreflexão humilde, apenas para citar algumas delas.
O empreendedorismo antropológico avança mais um passo quando incorpora a esse trabalho educacional um olhar para a sua comunidade, volta às raízes das crianças e adolescentes ao propor que as habilidades desenvolvidas pela educação empreendedora sejam colocadas em prática, sem que se perca de vista o ambiente onde os indivíduos estão inseridos, com todas as suas nuances e heterogeneidade, que forjam e são forjadas por seus integrantes.
O objetivo é estimulá-las a não perder o foco nesses elementos durante o aprendizado e que eles permeiem suas ações futuras, desenvolvendo e ajudando a comunidade na qual cresceram, sempre conhecendo e valorizando seus hábitos e crenças, reconhecendo toda a sua complexidade e diversidade. Ao mesmo tempo que se desenvolvem como seres humanos, também transformam o entorno, com engajamento e senso de cidadania.
No Brasil, ainda não temos a cultura de olhar para a nossa comunidade. Acredito que os japoneses representam muito do que o empreendedorismo antropológico ressalta. Quantos de nós não ficamos surpresos ao ver os torcedores do Japão demorarem mais tempo para deixar os estádios, durante a Copa do Mundo de 2014, para limpá-los? O empreendedorismo antropológico direciona o olhar para esse tipo de atitude, para a comunidade, para o bem de todos.
A criança e o adolescente, portanto, aprenderão, sim, a empreender para fins pessoais, mas sem perder o foco em respeitar, valorizar sua cultura e reverter benefícios para a comunidade em que está inserido, sendo efetivamente capaz de exercer sua cidadania. À medida que cresce pessoalmente, também levará consigo um forte sentimento comunitário, de pertencimento e de engajamento em prol do lugar onde nasceu, cresceu e se desenvolveu, que pode ser visto inclusive como sua cidade ou seu país.
Como é possível levar o empreendedorismo antropológico às escolas?
Realizar trabalho voluntário, promover atividades sociais ou culturais que coloquem a comunidade escolar e seu entorno em diálogo para se conhecerem, valorizarem suas histórias, descobrirem pontos positivos, negativos e o que pode ser feito para melhorar a vida de todos dentro daquele microcosmo. Esses são os primeiros passos para colocar a escola nesta nova direção.
Mas não é somente isso. A escola precisa, na realidade, passar por uma profunda transformação para se adaptar aos novos tempos e reunir o ferramental necessário para formar jovens preparados para assumir o protagonismo de suas vidas, tendo todas as competências cognitivas básicas, socioemocionais e digitais necessárias ao cidadão do futuro.
Que transformações devemos vivenciar na educação?
Há tempos falamos que a educação bancária, organizada para atender à sociedade industrial, já não faz mais sentido. Esta fazia sentido quando éramos formados para ter uma única profissão ao longo da vida, quando todo o conhecimento que adquiríamos no ensino superior era suficiente para sustentar nossa trajetória profissional e quando o reconhecimento e respeito a uma hierarquia determinavam os valores de uma sociedade.
Hoje, com o mundo em plena ebulição, com o advento da 4a Revolução Industrial e, para muitos, com a chegada de uma nova era, a da Inteligência Artificial, a sociedade e a economia passam a ter uma nova configuração, com novos princípios, valores e oportunidades de geração de renda. Reflete-se também na forma como as crianças e adolescentes estão neste mundo, como aprendem, quais são seus interesses e quais oportunidades terão em um futuro próximo.
Dizem que até 2040 muitas das profissões que existirão ainda não foram inventadas. O ser humano cada vez mais dependerá das tecnologias digitais para se relacionar com o mundo, deverá saber utilizá-las não somente como consumidor, mas também como produtor de novos conhecimentos. Cada vez vai ser mais simples programar e inventar “coisas” para resolver problemas do mundo real.
Ter as competências digitais e as socioemocionais será tão importante quanto ter as competências cognitivas básicas. A BNCC (Base Nacional Comum Curricular) traz esta visão quando apresenta as 10 Competências Gerais: Conhecimento, Pensamento Científico, Crítico e Criativo, Repertório Cultural, Comunicação, Cultura Digital, Trabalho e Projeto de Vida, Argumentação, Autoconhecimento e Autocuidado, Empatia e Cooperação, Responsabilidade e Cidadania.
Na BNCC, não há uma orientação específica relacionada às competências digitais. No entanto, as tecnologias digitais são recursos importantes em diferentes momentos dos projetos escolares para pesquisar, estabelecer relacionamentos, buscar parcerias e divulgar resultados.
Por meio dessas oportunidades, os alunos desenvolvem competências digitais alinhadas às recomendações apresentadas pelo currículo britânico, que se organiza em três áreas e dois graus de dificuldade, para serem trabalhados de forma transversal ao longo de toda a educação básica.
Programação, Tecnologia da Informação e Alfabetização Digital devem ser o foco do trabalho, envolvendo como principais atividades: aprender a programar, fazer boas pesquisas, trabalhar em comunidades virtuais de aprendizagem, utilizar softwares de produtividade, navegar de forma segura e respeitar a cultura digital.
Para construir um circulo virtuoso que prepare a escola para formar jovens dentro da cultura do empreendedorismo antropológico, todas essas competências devem ser desenvolvidas através de metodologias ativas, priorizando especialmente a aprendizagem baseada em projetos, criando oportunidades de os alunos pensarem em como resolver problemas do mundo real, relacionados à sua história ou à sua cultura, exercerem a autonomia, estimular a criatividade, fazerem uso de tecnologias digitais, terem tempo determinado para a tarefa e oportunidades de avaliação permanente.
O latim professore quer dizer pessoa que professa, que declara, que manifesta algum saber. Já aluno tem procedência no verbo latino alere, referente a alimentar, nutrir, sustentar; ele é um ‘afilhado’ do professor. O próprio significado da palavra professor já não faz completo sentido, cabendo melhor, acredito, a designação educador, com origem no latim educator – quem alimenta, orienta, prepara, e que também carrega na sua formação o verbo ducare, cujo significado é ‘conduzir para fora’.
Dentro dessa visão e considerando esse novo cenário pedagógico, os professores também precisam desenvolver novas competências alinhadas com a reconstrução do universo escolar, entre elas instigar os alunos a pensar em problemas do mundo real, relacionar-se com outras pessoas, fazer boas pesquisas, trabalhar bem em equipe, utilizar tecnologia digital para diferentes necessidades que se quer promover, pensar e refletir com frequência em seus problemas e nas oportunidades que podem gerar para seu bem-estar pessoal e para a sua comunidade.
Preparar os cidadãos do futuro para que sejam expoentes de um novo mundo, focando não apenas na geração de riquezas, mas também, e especialmente, no desenvolvimento comunitário, na preservação da cultura, no cuidado com o meio ambiente e na valorização de uma economia de mercado mais justa para todos serão as premissas para construirmos uma escola capaz de evidenciar o empreendedorismo antropológico, que encontra eco na reflexão do consultor em educação Ken Robinson:
“Nos últimos anos, a população mundial duplicou de 3 bilhões de habitantes para mais de 7. Somos o maior número de habitantes que jamais habitou a Terra. As tecnologias digitais estão transformando nossa forma de trabalhar, jogar, pensar, sentir e nos relacionar. Essa revolução está apenas começando! Os velhos sistemas educativos não foram criados com este mundo em mente. Melhorá-los a partir dos sistemas tradicionais não resolverá os desafios que enfrentamos na atualidade. Não temos que repará-lo, e sim transformá-lo”.
Luciana Allan
é diretora do Instituto Crescer, parceiro do Moderna Compartilha, e doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) com especialização em tecnologias digitais aplicadas à educação.