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Formando Leitores Multilíngues nas Redes Públicas

A inclusão no PNLD 2027 de livros didáticos de língua inglesa para os Anos Iniciais do Fundamental representa um marco no ensino público. Aqui, três autores refletem sobre os desafios, as oportunidades e o papel da leitura no letramento intercultural.

Texto: Ricardo Prado, com a colaboração de Elzimar Marins, Luciana Freitas e Ricardo Almeida

A partir de 2026, as escolas públicas brasileiras passarão a contar, pela primeira vez, com livros didáticos de língua inglesa voltados especificamente aos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. A mudança está prevista no edital do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD 2027) e reacende o debate sobre como deve ser o ensino da língua inglesa na Educação Básica pública.

Para compreender o impacto dessa inclusão, é fundamental avaliar as diretrizes presentes na Base Nacional Comum Curricular e contrapor com o currículo proposto e a realidade das salas de aula.

Questões como infraestrutura, qualidade dos materiais didáticos e o nível de complexidade do componente curricular têm ganhado foco nos debates educacionais.

Inglês Desde o Começo da Escolarização

Ensinar inglês desde os Anos Iniciais não significa antecipar a gramática ou preparar os alunos para a conversação, que é o caminho tradicional dos cursos de idiomas. O mais importante nessa etapa é sensibilizar as crianças para o contato com uma língua já bastante presente em sua realidade cotidiana, sobretudo nos meios digitais e em manifestações culturais. De fato, basta entrar em um shopping center para sermos bombardeados por mensagens em língua inglesa; o mesmo vale para tutoriais de games ou produtos culturais intensamente consumidos pelos jovens, como cinema e música. Portanto, deve-se partir do pressuposto que crianças e adolescentes, de forma mais ou menos intensa, já convivem com essa que se tornou a língua franca mundial, e ter em mente que a ênfase da disciplina, na rede pública, deve estar na leitura e na compreensão de textos, e não na conversação.

“O ensino de inglês ainda se apoia muito na oralidade, como se fosse voltado à conversação com um nativo. Mas o nosso aluno da escola pública raramente vai encontrar um norte-americano ou um estrangeiro para conversar na rua em inglês com autenticidade. O foco tem que mudar. A gente tem que entender que para o aluno da escola pública são muito mais relevantes as habilidades de leitura e a compreensão”, pondera Ricardo Almeida, professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) e doutor em Letras pela mesma instituição. Segundo ele, é fundamental compreender o inglês como língua franca, usada para a comunicação entre falantes de diferentes línguas nativas, além de valorizar suas múltiplas variações, os chamados World Englishes. “É preciso dar visibilidade a formas como o inglês é falado em diferentes partes do mundo, não apenas nos países centrais”, completa, exemplificando com o inglês da Jamaica, que chegou até nós graças às canções de Bob Marley, mas que não tem o mesmo estatuto da língua tal como é praticada nos países centrais, como os Estados Unidos, e no Reino Unido.

Sobre esse início de contato mais formal com a língua estrangeira, seja inglês, seja espanhol, Elzimar Marins da Costa, doutora em Letras Neolatinas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professora da Faculdade de Letras da UFMG, destaca que, nos Anos Iniciais da escolarização, trata-se de “uma aproximação, uma familiarização com a forma escrita, com o som”, e que essas ações didáticas devem, astutamente, piscar os olhos para os estudantes, buscando atraí-los pelo interesse e pela diversão. Elzimar, que também é autora de livros didáticos ao lado de Ricardo Almeida e de Luciana Freitas, explica que “isso pode ser feito de uma maneira muito agradável. Os livros que a gente faz têm essa perspectiva de propor atividades lúdicas, atividades que o aluno possa gostar de fazer”.

O que diz a BNCC?

A BNCC estabelece que o inglês deve ser ensinado como parte da formação cidadã, ampliando repertórios linguísticos, culturais e midiáticos dos estudantes. A leitura, nesse contexto, é entendida como prática social e intercultural, o que exige sensibilidade por parte dos professores para adaptar os conteúdos às diversas realidades locais. No entanto, essa flexibilidade nem sempre é simples. “O maior dilema é a rigidez do currículo. A BNCC impõe conteúdos por série, sem considerar as enormes desigualdades do país. Só que, em muitas turmas do sexto ano, por exemplo, os alunos ainda não estão plenamente alfabetizados em português”, aponta Luciana Freitas, que vê com preocupação a padronização das exigências. Luciana é doutora em Letras Neolatinas e tem pesquisado e desenvolvido projetos diversos que envolvem a Educação Linguística e a formação docente. Ela defende que o currículo real acontece na sala de aula e deve responder às necessidades concretas dos estudantes. “Essa lógica do currículo nacional com um conjunto de conteúdos por ano, desconhecendo a diversidade do país e das turmas, é o maior problema. A BNCC não quer saber dessa dificuldade. Ela te impõe um conjunto de conteúdos. E um país como o nosso não tem condições de ter um documento curricular imposto para todo mundo de forma igual. O que tem ali de conteúdo de língua inglesa é tanta coisa que o professor não consegue trabalhar. Nesse sentido, sou profundamente crítica a ela”, observa Luciana.

Apesar das críticas, os especialistas reconhecem que a BNCC avança ao tratar a linguagem como prática de uso. Ou melhor, não recua em relação a paradigmas anteriores, conforme lembra Ricardo Almeida: “Desde os PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais), a perspectiva discursiva está presente nos documentos curriculares, e isso foi mantido na BNCC. Aprender uma língua é, antes de tudo, aprender a usá-la em contextos significativos”.


Funciona trazer músicas que os alunos ouvem, mesmo que o professor não goste. O importante é acessar a linguagem que faz sentido para eles…


Como deve ser um bom livro didático de Inglês?

A inclusão da compra de livros didáticos de inglês no PNLD dos Anos Iniciais pelo governo representa um avanço histórico e pedagógico. Para os autores, trata-se de uma oportunidade de democratizar o acesso à educação linguística desde cedo, contribuindo para a formação de leitores multilíngues. “Há uma expectativa equivocada de que o livro didático de inglês para escola pública seja como o dos cursos de idiomas. Mas são propostas diferentes. Na escola, o foco é a educação linguística, com base em gêneros textuais diversos”, explica Elzimar. Segundo ela, o material deve partir do repertório prévio dos alunos, como músicas, aplicativos, filmes e memes, e expandir esse conhecimento, estimulando a leitura crítica e a inferência de sentidos.

Outro desafio apontado é a infraestrutura – ou a falta dela, como observa Luciana: “É importante pensar que na sala de aula brasileira temos de 30 a 35 alunos, em geral. Como você vai trabalhar isso, que é chamado no cursinho de conversação? É muito distante da realidade da escola pública”. Ela comenta que, muitas vezes, o áudio das atividades de escuta, que é obrigatório nos livros do PNLD, nem chega às escolas, ou o professor não tem meios de usá-lo. “Por isso, trabalhamos com propostas viáveis, centradas na leitura e na interpretação de textos escritos e visuais”, destaca Luciana.

Leitura e escrita com Criatividade

Mesmo diante das limitações, os autores defendem a adoção de metodologias envolventes e contextualizadas, que dialoguem com os interesses e a cultura dos estudantes. “Funciona trazer músicas que os alunos ouvem, como as de Taylor Swift, mesmo que o professor não goste. O importante é acessar a linguagem que faz sentido para eles”, diz Ricardo. Isso também vale para outros gêneros populares, como slam poetry, quadrinhos ou campanhas publicitárias – todos com grande potencial de engajamento e reflexão crítica por parte das turmas.

Nos Anos Finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio, atividades autorais como criação de livros coletivos, tertúlias literárias ou produção de folhetos ou campanhas podem ampliar o repertório e fomentar a imaginação. “Nós trabalhamos na perspectiva do gênero discursivo, mas não com a ideia de que o aluno precisa dominar este ou aquele gênero, mas de ele ver que a língua se materializa de diferentes maneiras, como numa capa de livro, num poema, num panfleto de campanha publicitária”, observa Elzimar. “Não é a gramática que deve ser o objeto de ensino, mas sim o texto. A gente enfatiza muito isso, tanto na produção do material didático quanto nas orientações do Manual do Professor”, sintetiza.

A pesquisadora também destaca outro aspecto importante presente nos bons livros didáticos de inglês, e que o professor da disciplina deve estar atento ao realizar sua escolha: “Saber explorar a capacidade do aluno de inferir é outra questão importante. Não partir do pressuposto que tem que entregar tudo muito pronto para o aluno. Nós partimos da ideia de que o aluno é capaz de inferir muitas informações – claro que a partir do encaminhamento que é feito nas atividades dentro do livro. E, principalmente para as séries iniciais, vale a pena explorar muito as imagens porque a linguagem visual está presente na nossa vida o tempo todo”. Para ela, o livro didático deve ser visto pelo professor como um aliado, não como uma amarra.

No cenário atual, ensinar inglês na escola pública não se resume a repetir regras gramaticais. É, sobretudo, formar leitores capazes de transitar entre culturas, linguagens e modos de vida diversos.

Como aponta a BNCC, a leitura em língua inglesa amplia o letramento, fortalece a cidadania e abre possibilidades de participação crítica na sociedade globalizada. Para isso, é preciso romper com a ideia de que o inglês é “a língua do outro” e mostrar ao estudante que ele já faz parte de sua realidade cotidiana. “Precisamos revelar isso aos alunos e mostrar que eles já têm, sim, saberes linguísticos em construção”, afirma Luciana.

Sobre o avanço da Inteligência Artificial nas escolas e nas universidades, Elzimar pondera que se trata de uma realidade inevitável. “Não tem como lutar contra. A gente precisa saber como usá-la a nosso favor, na sala de aula e na educação linguística. Talvez um caminho seja usar a IA para produzir coisas interessantes. Mas é uma discussão ainda muito recente no campo da educação.” Luciana completa com uma observação crítica: “A gente passa trabalho para os nossos estudantes, e eles, sejam adultos na licenciatura, sejam adolescentes e crianças, estão produzindo os textos com a Inteligência Artificial e não estão trabalhando, eles próprios, a sua construção do conhecimento. Com isso, o que tenho visto na minha faculdade é o retorno às provas sem consulta. Ou seja, a IA está provocando um retorno a instrumentos de avaliação com os quais não concordamos muito, mas a gente está se vendo sem outra alternativa. Esse meio-termo, a gente ainda vai levar um tempinho para chegar à educação”. A pesquisadora destaca, ainda, o aperfeiçoamento dos mecanismos de tradução disponíveis, como o Google Tradutor, que, segundo ela, evoluiu muito desde seu lançamento e tem apresentado traduções bastante confiáveis. Para o bom e para o mau uso…


… também outros gêneros populares, como Slam Poetry, quadrinhos ou campanhas publicitárias — todos com grande potencial de engajamento e reflexão crítica.


Formação Docente: O elo necessário

Mesmo com a inclusão de livros de inglês nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, via PNLD, a formação docente continua sendo o elo frágil no ensino de língua estrangeira nas redes públicas. Na avaliação de Luciana, “os cursos de licenciatura ainda priorizam uma formação bacharelesca, pouco conectada à realidade da Educação Básica pública”. Ela defende uma reformulação curricular nas universidades e aposta na formação continuada como chave para uma maior qualificação do ensino de língua estrangeira atualmente ministrado nas redes públicas.

Nessa perspectiva, a oferta de projetos de extensão, especialmente pelas universidades públicas, é vital. Na Universidade Federal Fluminense (UFF), pontua Luciana, o programa Proale oferece oficinas e cursos sobre leitura e ensino de línguas. Na mesma linha de formação continuada, destaca Elzimar, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde leciona, mantém há mais de duas décadas o projeto Educonle, que foca a formação continuada de professores da rede pública a partir do trabalho com gêneros discursivos. Já a Universidade de São Paulo (USP) oferece, desde 1992, minicursos de ensino de língua estrangeira por meio do Cepel (Centro de Estudos e Pesquisas em Ensino de Línguas), vinculado à Faculdade de Educação.

“O fundamental é o diálogo entre universidade pública e escola pública. Que a gente contribua e possibilite uma formação continuada dialógica, que possibilite ao professor ser autor da sua própria metodologia, de elaborar suas próprias atividades, de refletir sobre elas, e a gente também aprender”, afirma Ricardo Almeida. E conclui: “Sem formação continuada, nada se muda. Com formação continuada, muda-se. Devagar, mas se muda”.


Elzimar de Marins Costa
é professora da Faculdade de Letras da UFMG. Atua na graduação e na pós-graduação em Estudos Linguísticos e no Mestrado Profissional. É doutora em Letras Neolatinas pela UFRJ. Tem pesquisado e desenvolvido projetos nas áreas de Linguística Aplicada e de Análise do Discurso. É autora de livros didáticos para os Anos Iniciais e Finais do Fundamental e para o Ensino Médio pela Moderna.

Luciana Maria Almeida de Freitas
é professora da Faculdade de Educação da UFF. É doutora em Letras Neolatinas pela UFRJ. Tem pesquisado e desenvolvido projetos diversos que envolvem a Educação Linguística e a formação docente. É autora de livros didáticos para os Anos Iniciais e Finais do Fundamental e para o Ensino Médio pela Moderna.

Ricardo Luiz Teixeira de Almeida
é professor da Faculdade de Educação da UFF. Atua na graduação, na qual leciona disciplinas de Prática de Ensino para o curso de Letras. É doutor em Letras pela UFF. Desenvolve pesquisas na área de Políticas Linguísticas e formação docente. É autor de livros didáticos para os Anos Iniciais e Finais do Fundamental e para o Ensino Médio pela Moderna.

Para Saber Mais

  • BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: introdução aos parâmetros curriculares nacionais. Brasília, 1997. Disponível em: https://mod.lk/ed27_pa1. Acesso em: 18 jul. 2025.
  • BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2018. Disponível em: https://mod.lk/ed27_pa2. Acesso em: 18 jul. 2025. 
  • BRASIL. Política Nacional de Alfabetização. Brasília: MEC/Secretaria de Educação Básica, 2019. Disponível em: https://mod.lk/ed27_pa3. Acesso em: 18 jul. 2025.
  • CEPEL. Centro de Estudos e Pesquisas em Ensino de Línguas da USP. São Paulo: [s. n.], 1992. Disponível em: http: https://mod.lk/ed27_pa4. Acesso em: 21 jul. 2025.
  • EDUCONLE. Educação Continuada de Professores de Línguas Estrangeiras. Belo Horizonte: [s. n.], 2002. Disponível em: https://mod.lk/ed27_pa5. Acesso em: 21 jul. 2025.
  • PROALE. Programa de Extensão Alfabetização e Leitura. Rio de Janeiro: [s. n.], 2025. Disponível em: https://mod.lk/ed27_pa6. Acesso em: 21 jul. 2025.
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