fbpx

ESPECIAL BULLYING 04 |Eduação física sem bullying

Perspectivas pedagógicas mais sensíveis à pluralidade desafiam as aulas tradicionais – ainda restritas a apenas alguns esportes – para acolher todos os alunos e suas especificidades nas aulas de Educação Física

Por Lara Silbiger

Sob o olhar atento e crítico do grupo, o bullying encontra suas vítimas em diversas situações escolares. Uma delas são as aulas de Educação Física, nas quais o corpo, as preferências e as habilidades físicas dos alunos ficam em evidência. A exposição é ainda maior quando essas características se mostram “fora dos padrões”. Elas vão da total falta de habilidade para lidar com a bola ao sobrepeso, marcas de nascença, estatura muito acima da média ou abaixo demais, entre tantas outras que acabam virando motivo de intimidação caso o professor não esteja atento às práticas que instigam a agressão.

O primeiro passo é se conscientizar de que priorizar a performance corporal é um prato cheio para os conflitos. “Enquanto tivermos escolas com projetos de construção do corpo saudável, teremos bullying na Educação Física e crianças marcadas pela diferença”, sentencia Marcos Neira, coordenador do Gepef (Grupo de Pesquisas em Educação Física Escolar) e docente da Faculdade de Educação da USP. A marginalização fica clara, por exemplo, quando elas são as últimas escolhidos para formar os times. “A experiência pode ser tão frustrante a ponto de afastá-las das au- las, apoiando-se em discursos de rejeição, como ‘eu nem queria mesmo jogar’ ou ‘nem gosto disso’”, afirma Elaine Prodocimo, docente da Faculdade de Educação Física da Unicamp.

Para contemplar – e, se necessário, resgatar – esses alunos, com suas características e modos de ser, o desafio é buscar perspectivas pedagógicas mais sensíveis à pluralidade. Uma alternativa que ganha força é a proposta do currículo cultural, que não exige a aprendizagem da gestualidade técnica e valoriza o encontro de culturas e práticas corporais variadas na escola. “Na contramão do tecnicismo, ela trabalha a favor das diferenças e da aceitação. Não é remédio para o bullying, mas tem o compromisso de formar pessoas solidárias”, comenta Neira.

A solução passa por criar contextos inclusivos. Vale adaptar as regras dos esportes tradicionais à realidade escolar, bem como diversificar o conteúdo das aulas. “O esporte é só uma das práticas corporais. Outras também precisam estar no currículo, como luta, dança, brincadeira e ginástica”, destaca Leonardo Martins, coordenador da graduação em Educação Física do Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp). Para lidar com toda essa complexidade e minimizar os riscos de bullying, confira depoimentos de professores que transformaram a aula de Educação Física e um guia que a Educatrix preparou com boas práticas para a disciplina.


Desconstruindo o diferente

EE Professora Irene Ribeiro, São Paulo (SP)

Em 2015, alguns alunos da EE Professora Irene Ribeiro, na capital paulista, sofriam bullying por estar acima do peso. Os casos inspiraram uma das primeiras ações do projeto ‘Circo – em busca da felicidade’*, realizado com alunos do Fundamental 1, em uma parceria das disciplinas de Educação Fí- sica e Arte. “Para problematizar os padrões do corpo ideal, apresentamos a série ‘Circo’, do pintor Fernando Bottero. O instigante é que todas as obras retratavam cenas circenses só com personagens gordos”, conta Elenice Fernandes, professora de Educação Física. Na sequência, as crianças foram convidadas a fazer os movimentos pintados pelo artista, mas com um detalhe: elas podiam explorar suas habilidades e respeitar os limites do corpo. Na quadra, veio um novo desafio quando lhes foi apresentado o rolamento circense. “Alguns já sabiam dar cambalhotas. Outros, não. Foi a oportunidade perfeita para mostrar rolamentos diferentes, como o do judô e o da ginástica na água”, conta Elenice. Uma alternativa para rolar de lado foi sugerida por um aluno com sobrepeso. Outros gostaram da sugestão e copiaram a ideia. “O projeto foi um sucesso porque tudo se baseou na argumentação, o que desconstruiu estereótipos e abriu espaço para a tolerância e aceitação”, garante a professora de Educação Física.


* O projeto ‘Circo – em busca da felicidade’ foi premiado no XVII Prêmio Arte na Escola Cidadã,na categoria Ensino Fundamental 1.

A estratégia de Elenice reflete a abordagem de suas aulas. “Minha formação na faculdade foi tecnicista, mas hoje trabalho com a filosofia do currículo cultural, que entende o corpo como reflexo da cultura e território de disputa de poder”, afirma. Segundo ela, olhar o bullying sob essa perspectiva lhe permite desconstruí-lo nas aulas. “Não direciono os holofotes para a vítima nem para o agressor, mas crio condições para que o conflito se resolva entre eles a partir das discussões que lanço. Para ajudá-los nesse processo, trago referências externas que ampliam o repertório e os fazem refletir sobre as relações de poder estabelecidas”, explica Elenice. A professora ainda afirma que o exercício de identificar quem domina e quem é dominado pelo simples fato de ser diferente é justamente a chave para reverter o bullying na escola.

Balé em perspectiva

EE Pastor João Nunes, Guarulhos (SP)

Uma das diretrizes do PPP (projeto político-pedagógico) da EE Pastor João Nunes, localizada em Guarulhos (SP), é nunca descriminar as diferenças, sejam elas de gênero, orientação sexual, religião, cor ou qualquer outra. Foi sob essa ótica que o professor de Educação Física, Luiz do Santos, apresentou o balé para a turma do 3o ano do Fundamental. “De imediato, a reação dos meninos foi contrária. Muitos disseram que não viriam às aulas porque isso era coisa de bicha”, conta o professor. Aquele foi apenas o ponto de partida para uma discussão sobre orientação sexual, que acabou permeando todo o projeto. No início, os mais resistentes xingavam aqueles que ousavam fazer os exercícios de balé. “Alguns paravam de dançar. Ficavam intimidados”, lembra Santos. A situação foi sendo revertida na medida em que o professor ampliou o repertório da turma, ao mesmo tempo em que promoveu situações de diálogo e escuta. “Não dava para deixar de lado frases como ‘todo homem que dança é viado’, sem problematizar o lugar do homem no balé”, afirma. Para subsidiar novos pontos de vista, o professor foi além da vivência dos movimentos e trouxe detalhes da história do balé. Todos ficaram surpresos quando souberam que, no século XVIII, eram os homens que dançavam. Isso só mudou com a Revolução Industrial, quando eles assumiram trabalhos que exigiam força. “A maioria que permaneceu eram homossexuais. Daí a origem do preconceito que perdura”, explica o professor. A turma também assistiu a trechos do filme Billy Elliot, que retrata a reação agressiva de um pai frente à opção do filho pelo balé, e conversou com um bailarino profissional, que viveu na pele uma situação semelhante à do cinema. “A intenção, em momento algum, foi mudar a verdade dos alunos. Isso seria muita pretensão. Mas os fiz pensar naquilo que defendiam e ampliar o olhar para outras verdades.”

Esporte para todos

EMEF Virgínia Louriza Z. Camargo, São Paulo (SP)


* O projeto ‘Circo – em busca da felicidade’ foi premiado no XVII Prêmio Arte na Escola Cidadã, na categoria Ensino Fundamental 1.

Quem pode jogar basquete? Só os altos se dão bem? E os mais baixos têm alguma chance de fazer cesta? As inseguranças relacionadas à estatura tinham tudo para virar um problema entre os alunos do 2o ano do Fundamental 1 da EMEF Virgínia Louriza Zetitonian Camargo, na capital paulista, não fossem as estratégias adotadas pela professora de Educação Física, Aline Santos do Nascimento. A primeira coisa que ela fez foi adaptar a cesta para uma altura condizente com a faixa etária do grupo. “Depois sugeri que fizessem arremessos com diferentes tipos de bola e sentissem, na prática, que dá para jogar de várias formas”, conta. O próximo passo foi convidar a ex-atleta Marta Sobral, pivô e medalhista olímpica do basquete feminino, para um bate-papo com os alunos sobre os biotipos que se destacam no esporte. O ápice da conversa se deu quando todos concluíram que um campeão não se faz com a estatura. “Depende também de habilidade, condicionamento físico e oportunidade de ir para um clube profissional”, relembra a professora. Na semana seguinte, foi a vez de conversarem com a atleta amadora Sarith Anischa que, apesar da baixa estatura, é treinadora na ONG Pirituba Basketball. “A grande contribuição dela foi apontar caminhos para os mais baixos. Podem, por exemplo, se tornar fortes, habilidosos e ágeis para ser armadores ou, quem sabe, assumir a função de articulador”, destaca Aline.

Em paralelo, a classe pesquisou a história do basquete, a evolução das regras e como funcionam os atuais campeonatos. “Tudo isso nos deu liberdade para combinar nossas próprias regras e dar espaço para todos no jogo – livres de amarras e preconceitos.”

Estímulo a autoestima

Colégio Sion, São Paulo (SP)

Fugir da polarização entre os alunos que não jogam bem e os que se destacam em quadra é a estratégia do professor Tito Hellmeister para as aulas de Educação Física do Colégio Sion, na capital paulista. A ideia é evitar que a falta de destreza constranja alguém ou provoque intimidações por parte do grupo. “Caso o estudante não se sinta à vontade para fazer determinada atividade, sempre busco alternativas para que ele tenha de se expor”, afirma Tito. O segredo para achar a melhor saída está em conhecer as habilidades e preferências do aluno, a fim de incentivar a prática delas na Educação Física. “O mais importante é que ele não perca o estímulo e a autoestima”, destaca. A título de exemplo, o professor recorda a solução que encontrou para um adolescente que não gostava de esportes coletivos, mas que adorava jogar xadrez. “O convidei para liderar uma clínica de xadrez na escola e ainda organizar um torneio para fazer parte do campeonato interclasses do Fundamental 2”, conta Hellmeister.

Já no campeonato do Fundamental 1, cujos alunos ainda estão aprendendo a administrar derrotas e vitórias, o pro- fessor prefere mesclar práticas esportivas com atividades colaborativas. É o caso da corrida de obstáculos, em que a pontuação só depende de cumprir os requisitos do circuito. Tito ainda ressalta a importância de combinar previamente as regras das competições com as turmas, o que deve ser feito em todas faixas etárias e níveis de ensino.

Para saber mais

Compartilhe!
Site Protection is enabled by using WP Site Protector from Exattosoft.com