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Ensino Médio: o país que abandonou seu futuro

Em meio às expectativas sobre a BNCC e a Reforma do Ensino Médio, incertezas e inseguranças assustam instituições de ensino e refletem um problema em longo prazo no segmento.

Texto: Paulo de Camargo | Ilustração: Mariana Salimena

O ano de 2017 começou com um fio de esperança para a etapa educacional historicamente mais crítica da educação brasileira: no dia 16 de fevereiro, foi publicada, na forma de medida provisória, a Lei nº 13.415, conhecida como Lei da Reforma do Ensino Médio. Para os defensores da medida, a reforma foi assertiva ao enfrentar pelo menos três dos mais graves desafios que há décadas assombram a escola, no que se refere à educação de adolescentes e jovens: o excesso de disciplinas; a obrigatoriedade de um único percurso escolar, que não atende à diversidade de caminhos dos estudantes; e o crescente desinteresse demonstrado pelos alunos.

Mais de um ano depois da promulgação da medida, seu futuro ainda continua incerto. Os especialistas condicionam o sucesso da reforma a pelo menos duas outras variáveis, que devem ser definidas agora. A primeira é a publicação da Base Nacional Curricular Comum (BNCC) do Ensino Médio, prevista para novembro. A segunda é tão complexa quanto: trata-se de efetivamente garantir que os sistemas educativos e as escolas tenham condições de ofertar diferentes itinerários, bem como haja oferta de qualidade de educação profissional.

Entre tantas indefinições, há pelo menos um consenso: a urgência. O Brasil joga fora todos os anos uma parte de seu futuro. É um desperdício que pode ser medido em valores. Nas estimativas do economista Ricardo Paes de Barros, do Insper, são pelo menos R$ 100 bilhões anuais, se forem levados em conta o custo da repetência e da evasão, bem como os impactos sociais decorrentes da falta de educação, como mais gastos em saúde e segurança, por exemplo.

Mas não há desperdício maior do que o de vidas humanas. Segundo o estudo Políticas públicas para redução do abandono e evasão escolar de jovens, realizado por Barros em 2017, por encomenda do Instituto Brava e de outras organizações da sociedade civil, apenas 59% dos 10,3 milhões de jovens brasileiros de 15 a 17 anos conseguem se formar com, no máximo, 1 ano de atraso. São quase 3 milhões que anualmente repetem de ano, se evadem ou abandonam os estudos.

Uma das consequências desse fenômeno é o crescimento da chamada geração nem-nem (nem estudam, nem trabalham). Segundo os dados mais recentes do IBGE, são 11,1 milhões de pessoas com idade entre 15 e 29 anos que não trabalham, nem estão matriculadas em qualquer curso. Enquanto países desenvolvidos lutam para atrair força de trabalho jovem, o Brasil literalmente joga fora um bônus demográfico, enquanto rapidamente vê crescer seu contingente de idosos.

É o caminho inverso do que se vê mundo afora. No mesmo estudo, Barros demonstra pela primeira vez que 74% dos países que integram a ONU têm conseguido aumentar a porcentagem de jovens na escola em ritmo superior ao do Brasil. Estamos atrás de 63% dos países no que se refere à capacidade de inclusão dos jovens de 15 a 17 anos na escola.

Não bastasse estar na contramão global, o Brasil ainda rema no sentido contrário. Segundo o próprio coordenador de Ensino Médio do MEC, Wisley João Pereira, o IDEB, principal índice que avalia a qualidade da Educação brasileira, está estagnado desde 2011. Além disso, o desempenho em Português e Matemática chega a ser inferior ao verificado há duas décadas, que já era baixo. Hoje, segundo cálculos do movimento Todos pela Educação, quase 65% dos alunos têm desempenho abaixo do considerado adequado em Matemática. Em Português, o mesmo ocorre para 51% dos estudantes. As diferenças se agravam ainda mais quando se levam em conta critérios como raça, cor, renda e região.

O retrato da tragédia pode ser expresso em números diversos, pois há um painel bastante amplo dos problemas. Não é por falta de evidências científicas que os jovens brasileiros deixam de contar com uma boa educação de Ensino Médio, especialmente na rede pública. O pesquisador José Francisco Soares, presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CNE), costuma resumir seu diagnóstico em uma simples frase: “o Ensino Médio brasileiro é para poucos”.

A frase tem um sentido histórico. Desde o surgimento da primeira escola brasileira, o Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, a escola média é um caminho bem-sucedido apenas para uma pequena parcela da população. Nos documentos oficiais, estava claro e assumido que, para as camadas mais pobres, o caminho seria o da educação profissional, que nunca chegou a ser ofertada em qualidade ou quantidade suficiente. Daí a tradição marcadamente propedêutica do Ensino Médio, ou seja, um curso que chegou a 13 disciplinas obrigatórias, com a ambição de levar o adolescente a algo que não é exigido de nenhum outro cidadão: o domínio aprofundado de todas as ciências humanas, naturais e da Matemática.

Desde essa perspectiva, igualmente, consolidou-se a cultura do Ensino Médio unicamente como um caminho para o bacharelado universitário. Na falta de um currículo nacional, o programa das principais universidades brasileiras, notadamente as estaduais paulistas, passou a guiar o trabalho da escola de Ensino Médio. Mais recentemente, esse papel passou a ser cumprido também pelo Enem, que surgiu com o objetivo expresso de induzir as escolas a focar o ensino no desenvolvimento de habilidades e competências, mas tornou-se a si próprio um novo referencial curricular.

A reforma e a BNCC só terão sucesso se levarem em conta a valorização e a formação do professor para os novos tempos. 

Não pareceria tão despropositado se este fosse, de fato, o caminho de todos os jovens. Na educação brasileira, excludente e desigual, 82% dos jovens de 18 a 24 anos não chegam ao Ensino Superior, e não encontram nenhum outro caminho. Por isso, há um consenso entre os especialistas que a implementação da reforma do Ensino Médio tem como pré-condições a aprovação da BNCC, bem como a estruturação da oferta de educação profissional, que hoje capenga no país.

O total de matrículas na educação profissionalizante  vem caindo desde 2014, especialmente na rede privada. Hoje, são 1,75 milhão de alunos, sendo 1 milhão matriculados na rede pública. Isso representa 21% do total de matrículas do Ensino Médio. Mas além da pequena oferta, não há controle da qualidade oferecida pelas instituições de ensino que deveriam trabalhar estreitamente conectadas com o mercado de trabalho e, em especial, com os contextos locais da região onde estão inseridas.

Quando se fala em educação profissional pública, sempre vêm à lembrança experiências bem-sucedidas, como os Institutos Federais de Tecnologias, cujo crescimento foi estimulado na última década, e das escolas técnicas estaduais. É fácil constatar, porém, que uma porcentagem significativa dos egressos procura, na verdade, o acesso à universidade, e apenas aproveitam a escola pública de qualidade.

Não há, portanto, solução fácil. “Os problemas da educação brasileira são tão grandes que não será com qualquer latim que vamos resolvê-los. Temos de buscar soluções novas com nossas cabeças, corações e entusiasmo”, escreve Francisco Soares, no livro Os desafios do Ensino Médio, publicado em 2018 pela Editora FGV.

A reforma e a BNCC

A própria Reforma do Ensino Médio se insere no campo das ideias novas, embora tenha se inspirado em propostas e políticas já discutidas ao longo dos últimos anos. 

Entre as iniciativas lançadas por governos anteriores estão o Programa do Ensino Médio Inovador, o Pacto Nacional pelo Ensino Médio e os Protótipos Curriculares de Ensino Médio e Ensino Médio Integrado. Todos buscaram, por diferentes caminhos, flexibilizar essa etapa, reorganizar o currículo, trazer o trabalho como um princípio e atender aos diferentes perfis dos jovens.

Na visão dos seus defensores, a implantação da Reforma por meio de uma Medida Provisória responde a uma fragilidade de propostas anteriores, que tinham um caráter mais indutor e de modelagem do que de políticas públicas de implantação obrigatória. Com isso, prevaleceu um modelo que o educador Arthur Fonseca Filho, diretor do Colégio Uirapuru, classifica como hegemônico, ou seja, uma escola formatada para preparar alunos para um certo tipo de processo seletivo para ingresso no Ensino Superior. “O Ensino Médio brasileiro moderno se definiu a partir do que o vestibular e, mais recentemente, o Enem, cobraria dos alunos”, diz.

Por isso, a seu ver, o futuro da Reforma do Ensino Médio depende fortemente do sucesso da proposição da nova Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio. É esse parâmetro que, a seu ver, poderá trazer a escola para trabalhar com competências hoje valorizadas internacionalmente. “O Ensino Médio precisa deixar de ser treinamento para fazer exercícios, mas ensinar as competências do século XXI. Nosso compromisso é com as novas demandas da sociedade”, finaliza Fonseca Filho.

O diretor acredita que o desafio mais difícil será o da implantação, pois se trata de mudar práticas pedagógicas, formar equipes a partir de novos paradigmas, construir novas formas de avaliação e transformar a própria cultura dos alunos. “É mais fácil o aluno se convencer a estudar se pensar que precisa passar no vestibular”, diz.

Nos últimos tempos, o Uirapuru vem trabalhando para flexibilizar o trabalho pedagógico, na forma de matérias eletivas, bem como buscar práticas inovadoras, como as aulas invertidas. “É preciso começar a ampliar desde já a flexibilidade de nossa arquitetura curricular”, afirma Fonseca Filho.

O que afasta os jovens da escola?

Pesquisa reúne as causas do desengajamento juvenil

A reforma do Ensino Médio representa uma política pública que deve ser complementada por Estados e municípios, conforme seus próprios contextos. Afinal, os problemas da educação dos jovens possuem causas múltiplas, de origem social, pedagógica, individuais, de diferentes ordens. O estudo Políticas públicas para redução do abandono e evasão escolar de jovens, realizado pelo pesquisador Ricardo Paes de Barros, é o mais completo sobre o tema.

O pesquisador reuniu estudos e evidências nacionais e internacionais e estabeleceu 13 principais fatores do que chama de desengajamento dos jovens, com o objetivo de orientar as políticas públicas voltadas para os adolescentes. Esses fatores são agrupados em 3 conjuntos: 01 fatores que não decorrem da falta de interesse, mas sim da existência de impedimentos; 02 a falta de interesse como decisão bem informada e racional, e, 03 fatores determinantes que dizem respeito à falta de interesse sem informação adequada.

Do primeiro grupo fazem parte, por exemplo, o acesso limitado pela existência de vagas ou transporte; a impossibilidade física, a gravidez e a maternidade na adolescência, as atividades ilegais (uso de drogas, por exemplo); o mercado de trabalho; a pobreza; a violência. 

O segundo é composto pelo impacto do déficit de aprendizado; da falta de significado da aprendizagem; da baixa flexibilidade; da qualidade da educação e do clima escolar. 

Por fim, há fatores ligados à percepção equivocada ou parcial da importância da escola e da educação; e a baixa resiliência emocional.

A partir de agora, a pesquisa vai subsidiar diferentes ações do Instituto Brava para sensibilizar a sociedade e oferecer instrumentos aos gestores públicos para a implementação de práticas bem-sucedidas de inclusão dos jovens na escola. Entre elas, estão a publicação de um site que esmiúça os resultados do trabalho e facilita o acesso às políticas pesquisadas (www.gesta.org.br).

Entre outras contribuições, o estudo buscou ampliar o conceito de garantia dos direitos de educação, hoje focado unicamente na oferta e na qualidade de ensino. A proposta abrange os indicadores mais comuns, como o evasão, abandono e repetência, e foca na importância do engajamento. Segundo as projeções do autor, no ritmo atual e sem que nada seja feito, o Brasil levará até 200 anos para atingir metas que o próprio país estabeleceu, em documentos legais como o Plano Nacional de Educação.

Para o diretor do Colégio Alef Peretz, João Guedes, trata-se de reverter um processo de instrumentalização do conhecimento para o acesso à universidade. “O Ensino Médio é o endereço onde os jovens podem buscar conhecimentos que nossa sociedade julga importante. Mas reverter a carga genética de foco único na preparação para o vestibular é muito difícil, pois ela está muito enraizada na família, nos professores, nas escolas e nos jovens”, comenta.

Segundo o diretor, na Alef Peretz, o projeto pedagógico busca encontrar equilíbrio entre processo de conhecimento instrumental, uma vez que não é possível fugir do funil do vestibular, e um espaço de discussão livre sobre temas relevantes dessa mesma tradição. “A questão não é nem curricular, tampouco vinculada às estratégias pedagógicas. Nossas fichas são colocadas no fortalecimento da figura do professor. Se esse profissional for o guia da criança e do jovem no encontro com as inúmeras contradições existentes no plano da discussão intelectual, possivelmente esse jovem estará mais preparado para enfrentar as contradições imanentes da vida adulta”, diz.

A Reforma e a BNCC não terão sucesso se não levarem em conta a valorização do professor. Para Guedes, no entanto, o caminho parece apontar no sentido contrário. “Queremos formá-los com plataformas editadas, recicla-los. Aparentemente, isso garante a qualidade do ensino, mas, na verdade, enfraquece”, finaliza.

Problemas que permanecem

No contexto de grande incerteza que cerca a implantação efetiva da reforma e da BNCC do Ensino Médio, alguns pontos permanecem em aberto. Evidentemente, o maior ponto é o investimento necessário para se ampliar o tempo de permanência do aluno em sala de aula, que passa de 800 para 1400 horas anuais, com a implantação do ensino em tempo integral em pelo menos metade das escolas, como estabelece o Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024.

Esse certamente será um dos objetos de discussão e negociações entre os governadores dos Estados, onde se dão 90% das matrículas do segmento escolar. É preciso lembrar que o teto de gastos imposto pela emenda institucional 95, uma das primeiras medidas do governo Temer, dá pouca margem de expansão dos investimentos já restritos em Educação.

Além disso, o tempo de implantação da Reforma e da BNCC coincide com a expiração do principal mecanismo de financiamento da educação brasileira: o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), com vigência até 2020. Há, portanto, muita negociação pela frente e não são poucos os que acreditam em mudanças profundas nas propostas do governo federal.

Mas, mesmo que se resolvam as condições materiais de implantação da Reforma, ainda resta saber como as escolas lidarão com a liberdade de definição curricular e a oferta dos itinerários formativos previstos. Afinal, a base curricular estabelece diretrizes para 60% da carga horária. Os 40% restantes se darão em projetos e disciplinas de livre escolha do aluno, dentro das áreas de Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza e formação técnica e profissional. 

Para Fonseca Filho, que foi Secretário de Educação de Sorocaba e membro do Conselho Nacional de Educação e do Conselho Estadual de Educação de São Paulo, as escolas devem fugir de uma visão bancária da oferta de itinerários. “Isso é empobrecedor. O que está em jogo é a capacidade de oferecermos aos alunos alternativas curriculares para atender suas diferentes expectativas. Os custos dependem obviamente do que será feito. Não se trata de número de horas”, argumenta.

Para ele, a capacidade das escolas de dialogarem com o futuro será testada. “Quanto mais espaços fujam do tradicional formato da aula em uma sala de aula, quanto mais conseguirmos evitar de levar o mesmo conteúdo para todos indistintamente, mais atenderemos a essas demandas”, comenta.

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