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Contra a pandemia das fake news, a vacina é a educação

O combate às fake news passa por uma educação que forme leitores críticos, capazes de diferenciar textos jornalísticos de ficcionais e de ler texto, subtexto e contexto.

texto Paulo de Camargo

Sad Pinocchio with smiley face.

As notícias falsas não respeitam os fatos, a ciência, tampouco os sentimentos ou a segurança das pessoas. Até mesmo durante a pandemia da covid-19, mentiras desumanas como fotos de caixões carregados apenas com pedras, falsos remédios e teorias conspiratórias que alimentavam discursos de ódio circulavam pelas redes sociais. O advento das fake news colocou um imenso ponto de interrogação entre os seres humanos e a busca pela informação confiável.

Notícias falsas sempre existiram, é certo, mas nunca conseguiram ganhar tal aparência de verdade, nem circular de maneira tão veloz, varrendo o mundo no espaço de poucos minutos como agora. E, se está no mundo, também pertence ao universo da educação e das escolas, envolvendo as crianças, os adolescentes e suas famílias. Como lidar com esse fenômeno, que só tende a se agravar?

Responder a essa pergunta é o desafio da pesquisadora e jornalista Januária Alves, coautora do livro Como não ser enganado pelas fake news (Moderna), parte da coleção Informação e Diálogo. Quando fez seu mestrado na USP, há 15 anos, sobre grupos de crianças que produziam jornais, Januária se aproximou do mundo da educomunicação – área que estuda as intersecções entre educação e a produção de informação. Desde então, vem se aprofundando neste tema que se tornou um desafio global e agora integra a Base Nacional Curricular Comum (BNCC).

“O que há de novo nas fake news é a forma pela qual são produzidas e se proliferam”, afirma Januária, que vê os professores preocupados e se sentindo sem apoio para trabalhar uma área que desconhecem. As estratégias históricas, como discutir notícias em sala de aula, representam apenas um pequeno passo porque hoje, com as redes sociais, os alunos são produtores de informação. “É um trabalho de cidadania”, explica Januária, que participou da construção de um currículo de educação midiática para a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo.

É isso o que as escolas vêm sentindo na pele. Muitas vezes, circulam informações não apenas mentirosas, como prejudiciais para alunos, professores e outros profissionais da Educação. Há dois anos, o diretor de uma tradicional escola da Zona Sul carioca estava a caminho de seu sítio, quando começou a receber mensagens torrenciais sobre um caso de racismo na escola, o que nunca de fato acontecera. “Ficamos indefesos, tendo que explicar algo que simplesmente não tinha origem ou base em verdade”, lembra o diretor, que nunca esqueceu o episódio e prefere não se identificar. Apenas no segundo semestre do ano passado, duas tradicionais escolas, uma em São Paulo e outra em Belo Horizonte, sofreram com a divulgação de notícias falsas sobre supostos casos de assédio sexual. Ao final, nada foi comprovado, em nenhum dos casos, mas os traumas permaneceram.

Por que acreditamos?

Muitas vezes, as notícias são absurdas, mas mesmo assim ganham tração e circulam. Segundo Januária, as pesquisas mostram que as fake news possuem um forte componente emocional. “Uma notícia falsa tem 70% mais chance de circular do que uma verdadeira. Existe um fator sedutor que é o desejo humano de contar histórias de impacto”, diz a pesquisadora.

Para causar esse efeito, o texto frequentemente usa termos exagerados, muitos adjetivos, tons de denúncia, traz apelos e chamados à ação, como “você tem que repassar isso”, “mande para o máximo de pessoas que puder”. Em uma reação de impulso, basta apertar o botão Enviar, e lá se vai a mentira para amigos, família e grupos de afinidades: mais veloz do que um vírus e, algumas vezes, mais prejudicial. Por isso, como explica Januária, o primeiro desafio da escola é ensinar a seus alunos as diferenças marcantes entre o texto jornalístico e o texto ficcional – que é a classificação das notícias falsas.

Mais recentemente, um novo fenômeno veio somar à divulgação de notícias falsas: a sua transformação em um produto. Robôs – programas que simulam perfis reais de pessoas nas redes sociais – invadiram as redes sociais replicando notícias enganosas com determinados objetivos. “Há um movimento mais amplo hoje que é o da desinformação intencional, que está ligado ao descrédito das ciências”, diz Januária.

Turbinadas por teorias conspiratórias, enxurradas de fake news atacam as instituições que produzem informação de credibilidade, como o jornalismo, a universidade, os cientistas e os sistemas eleitorais. É o caso das notícias que tentam dar asas à inconcebível teoria de uma Terra plana ou a que atribuiu a covid-19 a uma ação maquiavélica do governo chinês.

Até mesmo o avanço tecnológico cria condições para uma nova geração de mentiras: a chamada deep fake news. Utilizando aplicativos de fácil acesso, pessoas com algum domínio de ferramentas digitais podem inserir em um vídeo qualquer fala de outra pessoa, com a mesma voz e simulando os movimentos da sua boca. Da mesma forma, pode-se distorcer fotos antigas, como se fossem recentes, e inserir informações falsas que gerem credibilidade, como dados e números, conferindo-lhe aspecto de verdade. “Pela maneira como são desenvolvidas essas fake news, fica mesmo difícil não embarcar”, explica Januária.

A crescente complexidade do tema obriga a escola a dedicar mais tempo para utilizar melhores estratégias para trabalhar com os alunos. O Colégio Rio Branco, em São Paulo, dá atenção especial ao assunto. No dia 1 º de abril, tradicional Dia da Mentira e já durante o período de isolamento social, os alunos do 9º ano do Ensino Fundamental e de todo o Ensino Médio participaram da oficina virtual Mídia Digital, pra quê?, que debateu as fake news no contexto da pandemia. O encontro abordou a responsabilidade do uso das mídias digitais, a checagem de informação, o cuidado no compartilhamento e o combate à desinformação, e os alunos participaram de um desafio de checagem de notícias falsas e verdadeiras.

Pinóquio sobre uma pilha de jornais internacionais.

Para a pesquisadora Januária Alves, o trabalho pode começar na Educação Infantil, pois até as crianças já têm clara noção do que são notícias falsas. Em uma formação recente para a Secretaria Municipal de Educação, uma professora narrou sua experiência com o trabalho, durante uma roda de conversa. Perguntada se sabiam o que eram fake news, uma criança imediatamente levantou a mão e disse: “é notícia mentirosa e o celular da minha mãe está cheio delas!”.

O exemplo mostra a importância de envolver a família nas discussões. A experiência pessoal já nos mostra, por exemplo, que grupos familiares são terreno fértil para a difusão de fake news. Além disso, as implicações da propagação de fake news já são enquadradas criminalmente, em um cerco que deve se apertar, com o avanço da legislação.

Ao mesmo tempo, é preciso trabalhar com os professores de todas as áreas e a própria direção escolar. “Não se trata de escolher uma ou outra área para este trabalho, todos são responsáveis por formar para a cidadania”, diz Januária. Assim, cada vez mais, dotar esses futuros cidadãos de ferramentas contra as notícias falsas é essencial. “As fake news representam um ataque à democracia”, finaliza.

Ação internacional

Sim, um ataque à democracia. É por isso que a Organização Nações Unidas (ONU) vem se mobilizando internacionalmente, com iniciativas como a plataforma Verified, cujo objetivo é conter a propagação de notícias falsas sobre a covid-19 (http://shareverified.com). “Não podemos ceder nossos espaços virtuais a quem trafega mentiras, medo e ódio”, afirmou em seu lançamento o secretário-geral da ONU, António Guterres. “A desinformação se espalha on-line, em aplicativos de mensagens e de pessoa para pessoa. Seus criadores usam métodos de produção e distribuição mais experientes. Para combater isso, cientistas e instituições como as Nações Unidas precisam alcançar pessoas com informações precisas nas quais possam confiar”, disse.

Assim como este, diversos sites de checagem rápida de informação, disponíveis em vários idiomas, estão sendo produzidos em parceria entre a mídia jornalística, organismos sociais e grandes empresas de telecomunicação. É o caso brasileiro da Agência Lupa, cujo foco é a caça às fake news, e mesmo de diversos grupos independentes que vêm se formando nas redes sociais.

Nos últimos anos, a Unesco, agência da ONU voltada à educação, à ciência e à cultura, produz pesquisas e livros sobre o tema, em uma área denominada Alfabetização Midiática e Informacional (ou Media Literacy, em inglês).

Em maio, a Rede Internacional de Escolas Associadas da Unesco, em Paris, promoveu um webinar com especialistas de diversas partes do mundo, envolvendo jovens ativistas e educadores, para discutir caminhos para fazer frente à propagação das notícias falsas. Para os especialistas participantes, o papel da educação é central, mas não deve se restringir ao campo da linguagem. Para o pesquisador Joseph Kahne, da Universidade da Califórnia, é preciso formar pessoas mais solidárias e empáticas. “Nós temos de dar às crianças oportunidades de prática, ajudando os outros, trabalhando com o mundo real. Todos temos responsabilidade sobre a desinformação”, defende.

Nos últimos anos, a Unesco, agência da ONU voltada à educação, à ciência e à cultura, produz pesquisas e livros sobre o tema, em uma área denominada Alfabetização Midiática e Informacional (ou Media Literacy, em inglês).

Em maio, a Rede Internacional de Escolas Associadas da Unesco, em Paris, promoveu um webinar com especialistas de diversas partes do mundo, envolvendo jovens ativistas e educadores, para discutir caminhos para fazer frente à propagação das notícias falsas. Para os especialistas participantes, o papel da educação é central, mas não deve se restringir ao campo da linguagem. Para o pesquisador Joseph Kahne, da Universidade da Califórnia, é preciso formar pessoas mais solidárias e empáticas. “Nós temos de dar às crianças oportunidades de prática, ajudando os outros, trabalhando com o mundo real. Todos temos responsabilidade sobre a desinformação”, defende.

Da mesma forma, os sistemas educativos devem priorizar a educação científica, já que a própria ciência está sob ataque. Para a pesquisadora italiana, Stefania Gianini, deve se mostrar que a ciência é dinâmica e não produz verdades absolutas, mas baseia-se em métodos verificáveis. “É preciso falar sobre a origem da informação, a metodologia, sobre o que pode ser verificado, mostrando que ciência não é um edifício de verdades, mas tem métodos que todos devem conhecer”, lembrou.

Quanto mais se torna complexo o tema, mais importante é investir na formação para diversificar estratégias e tornar o trabalho interdisciplinar. “É preciso formar um leitor crítico e analítico, com repertório, que consiga desconfiar e perguntar: quem se beneficiaria com isso?”, defende Januária Alves. Até porque as notícias falsas conversam entre si, espelham ações globais, como é o caso dos discursos de ódio. Para isso, é tão importante o professor de História, Geografia quanto o de Português, o de Ciências e o de Inglês. “Temos de avançar, e realmente fazer com que o aluno tenha repertório para ler o texto, entender o subtexto e analisar o contexto”, explica a pesquisadora. No final do dia, a melhor vacina contra as notícias falsas continua sendo a educação de qualidade.

PARA SABER MAIS:
Agência Lupa. Disponível em: mod.lk/alupa. Acesso em: 10 ago. 2020.
AIDAR, F.; ALVES, J.C. Como não ser enganado pelas fake news. São Paulo: Moderna, 2019

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