BNCC no Ensino Médio: o que esperar?
Um mergulho nas áreas de Linguagem e Matemática para compreender caminhos que se abrem às escolas.
A base nacional comum curricular para o Ensino Médio determina os componentes curriculares de Língua Portuguesa e Matemática como obrigatórios para os três anos do segmento. Assim, as disciplinas ganharam mais horas de formação e diretrizes específicas de competências e habilidades que devem ser desenvolvidas. Nesta edição, convidamos autores de Língua Portuguesa e de Matemática para dar um parecer sobre os caminhos para o trabalho com habilidades e competências socioemocionais de maneira integrada, colaborativa, criativa e formativa no Ensino Médio.
O novo Ensino Médio e a resolução de problemas
Foco no desenvolvimento de pensamentos e competências matemáticas para toda a vida.
Texto: Fabio Martins de Leonardo
Os resultados que os estudantes brasileiros vêm apresentando em avaliações nacionais e internacionais refletem, em parte, o fracasso do Ensino Médio no Brasil. Os altos índices de evasão escolar contribuem, ainda, para que este seja considerado o gargalo da nossa Educação Básica. Segundo o censo da Educação Básica publicado pelo Inep em 2019, mais de um terço dos brasileiros de 25 a 34 anos não concluiu o Ensino Médio. Dos cerca de três milhões que ingressaram nessa etapa, aproximadamente 700 mil não chegaram ao último ano.
Os números ilustram uma realidade existente há tempos nas escolas brasileiras e levam a uma reflexão sobre a distância do Ensino Médio — que se concretiza muitas vezes por meio de abordagens pedagógicas afastadas das culturas juvenis, do mundo do trabalho e das dinâmicas e questões sociais contemporâneas — em relação às expectativas dos jovens que se preparam para o mercado de trabalho.
A reforma do Ensino Médio pode ser vista como uma tentativa de atrair os jovens para a escola, pois prevê a substituição do modelo único de currículo por um modelo composto da Formação Geral Básica, que abrange as competências e habilidades das áreas de conhecimento previstas na BNCC, e por Itinerários Formativos, organizados por meio de diferentes arranjos curriculares, conforme a relevância para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de ensino. Esse modelo adota a flexibilidade como princípio de organização e busca atender à multiplicidade de interesses dos estudantes.
Em paralelo, há a preocupação em se garantir aos jovens as aprendizagens necessárias para atuar em uma sociedade em constante mudança e prepará-los para profissões e tecnologias que ainda serão inventadas e para resolver problemas variados. Nesse sentido, a BNCC ressalta a importância de se trabalhar o pensamento computacional, o que envolve as capacidades de compreender, analisar, definir, modelar, resolver, comparar e automatizar problemas e suas soluções, de forma metódica e sistemática, por meio do desenvolvimento de algoritmos.
O pensamento computacional pode ser entendido como processo de resolução de problemas. Segundo José Armando Valente, trata-se da “formulação de problemas de uma forma que permita usar um computador e outras ferramentas para ajudar a resolvê-los; organização lógica e análise de dados; representação de dados através de abstrações como modelos e simulações; automação de soluções através do pensamento algorítmico (a série de passos ordenados); identificação, análise e implementação de soluções possíveis com o objetivo de alcançar a mais eficiente e efetiva combinação de etapas e recursos; e generalização e transferência desse processo de resolução de problemas para uma ampla variedade de problemas”.
Observando as habilidades da Matemática e suas Tecnologias previstas na BNCC para o Ensino Médio, nota-se que muitas trabalham a resolução de problemas:
► (em13mat306) Resolver e elaborar problemas em contextos que envolvem fenômenos periódicos reais, como ondas sonoras, ciclos menstruais, movimentos cíclicos, entre outros, e comparar suas representações com as funções seno e cosseno, no plano cartesiano, com ou sem apoio de aplicativos de álgebra e geometria.
► (em13mat315) Investigar e registrar, por meio de um fluxograma, quando possível, um algoritmo que resolve um problema.
► (em13mat406) Utilizar os conceitos básicos de uma linguagem de programação na implementação de algoritmos escritos em linguagem corrente e/ou matemática.
Assim, espera-se que os estudantes não apenas “resolvam”, mas “resolvam e elaborem problemas”. Espera-se que identifiquem ou construam um modelo para gerar respostas adequadas, analisar os fundamentos e as propriedades de modelos existentes, avaliando seu alcance e validade para o problema em foco e até a possibilidade de transferência desse modelo para a resolução de problemas similares. Espera-se que investiguem e utilizem os conceitos estudados.
Apesar de comumente associado à Matemática, o pensamento computacional não se restringe a ela. Ele permite trabalhar a capacidade de raciocinar logicamente, formular e testar conjecturas, avaliar a validade de raciocínios e construir argumentações – capacidades importantes para diversos aspectos do cotidiano e, portanto, objeto de trabalho nas diversas áreas do conhecimento. Uma das novidades trazidas pela BNCC está, justamente, em propor que o trabalho com essas capacidades esteja presente nas diferentes áreas do conhecimento.
Com as expectativas que se colocam sobre a reforma do Ensino Médio, surgem os desafios de sua implementação, entre eles a flexibilização curricular e a transposição das barreiras disciplinares para o trabalho com temáticas que permeiam as várias áreas do conhecimento, como o pensamento computacional.
Fabio Martins de Leonardo
é licenciado em matemática pela USP e editor executivo de Matemática da Editora Moderna.
Para saber mais
- Valente, J. A. Integração do pensamento computacional no currículo da educação básica: diferentes estratégias usadas e questões de formação de professores e avaliação do aluno. Revista e-Curriculum. 2016, 14(3), 864-897. Disponível em: mod.lk/ed18linh. Acesso em: 10 fev. 2020.
O novo Ensino Médio e a produção de sentidos
Trabalho em área: a integração em favor do desenvolvimento de competências e habilidades.
Texto: Marisa Balthasar e Shirley Goulart
Dentre as mudanças esperadas para o Novo Ensino Médio, os currículos precisarão garantir os direitos comuns de aprendizagem, nas diferentes áreas do conhecimento*, indicados pela BNCC. Eles configuram uma formação integral dos jovens, com desenvolvimento articulado de competências e habilidades cognitivas e socioemocionais.
Essa formação deverá promover ampliação da participação cidadã, ética e crítica; protagonismo em projetos de vida, com realizações pessoais e coletivas, maior autonomia nos estudos e escolhas para a inserção no mundo do trabalho.
Em vez das sequências de conteúdos disciplinares, os currículos oferecerão situações significativas de aprendizagem para o exercício e o aprimoramento de um conjunto de competências/habilidades, com mobilização de conhecimentos de diferentes ordens: conteúdos, conceitos, procedimentos e processos, atitudes e valores – os objetos de conhecimento.
A Lei n. 13.415/2017 determina as áreas do conhecimento em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas; Ciências da Natureza; Linguagens e Matemática. A Lei traz flexibilidade para a arquitetura curricular das redes, mas fixa a obrigatoriedade do ensino de Língua Portuguesa e de Matemática em todos os anos do Ensino Médio. Assim, Língua Portuguesa tanto integra Linguagens, no desenvolvimento de competências e habilidades da área, como responde pelo desenvolvimento de outras mais específicas às práticas de linguagem com língua materna, como as que interessam para a formação do leitor literário ou para o uso reflexivo da argumentação, nas situações orais e multissemióticas em que predomina o argumentar.
*Lei n. 13.415/2017: as áreas do conhecimento
Habilidade (em13lgg301) Participar de processos de produção individual e colaborativa em diferentes linguagens (artísticas, corporais e verbais), levando em conta suas formas e seus funcionamentos, para produzir sentidos em diferentes contextos.
Em Linguagens e suas Tecnologias, a BNCC indica que no Ensino Médio deve-se retomar e aprofundar objetos de conhecimento da etapa anterior em favor de habilidades que, em progressão curricular, tornam-se mais complexas pelas ações cognitivas que demandam (interpretar, argumentar, avaliar, estabelecer relações etc.) e pelas práticas de linguagens dos diferentes campos de atuação que as mobilizam, exigindo usos mais críticos, reflexivos, autorais e colaborativos de linguagens, mídias e suas combinações. Espera-se mais autonomia dos estudantes como sujeitos dessas práticas, em especial nas das culturas juvenis, dos novos e dos multiletramentos.
Quando alinhadas aos pressupostos da área (linguagens como interação; centralidade dos jovens como sujeitos das práticas; usos como base para reflexão, análise e novos usos) e focadas no desenvolvimento de habilidades/competências, as práticas dos diferentes componentes integram-se como práticas de área.
O que se espera no trabalho de Artes, Educação Física, Inglês e Língua Portuguesa é uma integração de “alicerce”, isto é, orientada por uma concepção teórico-metodológica da área e por isso nem sempre os componentes precisarão ter atividades “casadas”, o que acontecia em propostas interdisciplinares frágeis, em que cada componente respondia por uma ação isolada.
Na abordagem em área, para desenvolver a habilidade EM13lgg301, por exemplo, Educação Física poderá propor a experimentação de práticas corporais de diferentes matrizes culturais, problematizando e materializando o respeito ao outro, a colaboração, com inclusão. Arte poderá trabalhar a apreciação e criação com dança, teatro, música, artes visuais e/ou suas combinações, com mobilização de conhecimentos sobre as linguagens artísticas; escolhas, tomada de decisões, considerando intencionalidades e contextos culturais. Já em Língua Portuguesa e Língua Inglesa, processos de produção de textos e atos de linguagem, de autoria individual e coletiva, com mobilização de conhecimentos de recursos linguísticos e multissemióticos, reflexão sobre intencionalidades e efeitos de sentidos.
Assim, o desenvolvimento dessa habilidade pode ocorrer em variadas propostas de autoria coletiva e colaborativa, em atividades dos componentes ou em projetos e ações da área, articulando dimensões relevantes para a formação integral, como escuta interessada, empatia, diálogo em favor de deliberações e consensos, nas diferentes propostas de experimentação, criação e produção com as linguagens artísticas, corporais e verbais.
Observe-se que isso implica procedimentos comuns à área: definição e análise de contextos de produção, circulação e recepção de textos e atos de linguagem, reflexão sobre intencionalidades e valores, processos de criação, experimentação e produção de textos e atos de linguagem, problematização de escolhas de recursos das linguagens e possibilidades de sentidos.
Muitos poderão ser os caminhos para que a área configure a escola como espaço de vivência autoral, criativa, colaborativa, crítica, ética e poética das linguagens: oficinas de criação, coletivos de poesia e arte, manutenção de blogs literários ou revistas digitais, projetos de investigação, de pesquisa… E as escolhas devem ser conectadas com expectativas, demandas, interesses juvenis, com foco nas competências/habilidades que os estudantes precisam desenvolver até o fim do Ensino Médio. Vale observar que uma prática pode favorecer várias habilidades, a depender de como é planejada, estruturada e mediada como situação didática.
Marisa Balthasar e Shirley Goulart
são autoras da coleção Singular & Plural, da Moderna.
Para saber mais
- Ferramenta Base Nacional Comum Curricular Comentada – Linguagens, Instituto Reúna. Disponível em: mod.lk/linha18. Acesso em: 10 fev. 2020.