A matemática da cidadania
Há inúmeras consequências individuais e coletivas em função do baixo nível de conhecimento e aprendizado em matemática, como, por exemplo, o envolvimento em sites de apostas.
Texto: André Lázaro
Das criações antigas às aplicações atuais, a matemática se multiplicou e subdividiu em inúmeras áreas, como atestam os eventos que reúnem especialistas na disciplina. Além de ampliar seu campo específico, outras áreas do conhecimento humano buscam recursos da matemática para alcançar maior precisão em suas investigações. Assim, tanto a biologia como as ciências sociais, a astronomia e a geologia, a medicina e a física, a computação e as pesquisas aplicadas, como as enquetes eleitorais, todas dialogam com os recursos que a matemática oferece.
A revolução digital que estamos vivendo é informada pela matemática. Maravilhas como os smartphones não apenas fazem cálculos sofisticados como eles próprios são frutos das invenções matemáticas, não apenas nos requisitos e nos parâmetros para sua fabricação, mas também em seu funcionamento. Por exemplo: o sistema de posicionamento que utilizamos facilmente nos aparelhos celulares são a combinação de complexas equações que tanto possibilitam a manutenção dos 24 satélites geoestacionários que formam o GPS (Global Positioning System) como a transmissão em tempo real das coordenadas que nos situam no espaço.
Outro exemplo próximo de nós é o funcionamento dos algoritmos. O nome já revela sua origem: foi o matemático árabe Al Khwarizmi, no século 9, quem descreveu regras para as equações matemáticas, exatamente o que fazem os algoritmos: uma sequência de orientações que conectam fases da realização de uma tarefa.
Essa sequência é escrita em linguagens específicas – linguagens computacionais – que determinam ações sucessivas a ser realizadas por máquinas. Assim, hoje, Google, Instagram, Facebook e Spotify são redes em que os algoritmos funcionam recolhendo dados e usos dos participantes e associando informações que hipoteticamente são de interesse dos usuários. Sob as afinidades e as rejeições estão os algoritmos.
A eficiência dos algoritmos e sua presença em nosso cotidiano têm despertado a preocupação de setores da sociedade, atentos à ocorrência de vieses antissociais na aplicação desses mecanismos em plataformas de interação. Em 2015, por exemplo, o Google pediu desculpas públicas pelo viés racista do seu aplicativo de fotos.
Os algoritmos não são neutros em seus procedimentos de associar e combinar informações, antes atendem aos modos e às intenções com que foram programados. Assim, é crescente a preocupação mundial com a interferência nos debates políticos e nas campanhas eleitorais. Já foram reunidas evidências de que houve usos manipulados em importantes campanhas, como a votação sobre o Brexit na Inglaterra e as eleições norte-americanas, brasileiras e em muitos outros países.
O professor Virgílio Almeida, cientista da computação, lembra que “a computação de décadas atrás tinha muito menos impacto na vida das pessoas, mas, com a invenção de celulares, tablets e da própria internet, ela se aproximou. (…) [Os algoritmos] são propriedade privada, mas seus impactos podem ser públicos”.
O diálogo entre humanos e máquinas
O diálogo entre humanos e máquinas programadas por algoritmos está em fase inicial, marcado por visões imediatistas e utilitárias, que não questionam os impactos profundos de seu uso nas relações pessoais, familiares e sociais. Há quem veja nesse diálogo o silenciamento da diversidade de opinião, visto que os algoritmos tendem a uniformizar grupos e agregá-los em torno de convicções fechadas e excludentes do diálogo democrático. A combinação dos algoritmos com a imensa quantidade de informações armazenadas nos big data permite especulações e manipulações ainda mais complexas cuja utilização não está sob algum valor ou norma ética, mas a serviço de elevar resultados, a qualquer custo.
Há quem identifique nesses processos automatizados uma ameaça ainda maior. A pesquisadora Cathy O’Neil chamou esses modelos nocivos de Armas de Destruição Matemáticas, ou ADMs. Em seu livro Algoritmos de destruição em massa: como a big data aumenta a desigualdade e ameaça a demora, O’Neil apresenta suas críticas aos sistemas automatizados já na parte inicial da obra ao declarar: “Este livro irá focar-se agudamente em outra direção, nos danos causados pelas ADMs e na injustiça que elas perpetuam. Iremos explorar exemplos danosos que afetam pessoas em pontos-chave da vida: acessar a universidade, tomar empréstimos, ser sentenciado à prisão ou encontrar e manter um emprego. Todas essas esferas da vida são cada vez mais controladas por modelos secretos exercendo punições arbitrárias”.
Para o professor Virgílio Almeida, é preciso fortalecer a educação, para que a população como conjunto entenda melhor o funcionamento desses mecanismos e, ao mesmo tempo, para formar pessoas que possam desenvolver programas e algoritmos respeitosos com a diversidade social política, cultural e religiosa.
A questão da matemática na cidadania, portanto, precisa ser vista em ao menos três dimensões complementares:
- Desenvolver com o conjunto da população a capacidade de operar os procedimentos matemáticos em seu cotidiano, como as operações básicas, a leitura de proporções, gráficos e tabelas e as diversas notações das grandezas e suas relações;
- Conhecer a presença da matemática nas diversas dimensões da vida, em especial nas utilizações automatizadas orientadas por algoritmos com fins comerciais ou políticos, de modo a lidar criticamente com seu funcionamento;
- Promover a capacidade de abstração, sem a qual a vida social fica reduzida ao que é imediato e percebido como inevitável.
Neste particular, vale recorrer aos ensinamentos de Paulo Freire quando escreveu Pedagogia do oprimido. Para o patrono da educação brasileira, a educação de jovens e adultos analfabetos que conheceu no sertão pernambucano deveria enfrentar um sentimento profundo nessas populações: o fatalismo. O fatalismo, lembra Paulo Freire, “quase sempre (…) está referido ao poder do destino ou da sina ou do fado – potências irremovíveis – ou a uma distorcida visão de Deus”.
Hoje os algoritmos nos são apresentados como uma fatalidade; diante de um equívoco produzido por componentes digitais de um sistema, é comum que os responsáveis respondam sem ansiedade: é o sistema que funciona assim. A ideia de que o sistema tem interesses, vontades e desejos próprios é a versão contemporânea da fatalidade irreversível. A educação pode nos ajudar a transformar essa visão e esse comportamento?
Uma publicação brasileira do final dos anos 1980 chamou a atenção sobre o ensino e a aprendizagem de matemática no sistema escolar. Um breve resumo: crianças entre 9 e 15 anos que trabalhavam em venda de mercadorias em feiras realizavam mentalmente cálculos matemáticos com agilidade e método, mas erravam quando desafiadas a responder problemas semelhantes em moldes escolares, ou seja, as contas organizadas com lápis e papel. A pesquisa questiona o chamado “fracasso escolar” atribuído ao estudante, e o entende como o fracasso da escola. E busca localizar as razões desses resultados:
- Na incapacidade de aferir a real capacidade da criança;
- No desconhecimento dos processos naturais que levam a criança a adquirir o conhecimento;
- Na incapacidade de estabelecer uma ponte entre o conhecimento formal que deseja transmitir e o conhecimento prático do qual a criança, pelo menos em parte, já dispõe.
Os resultados recentes de avaliações escolares – nacionais e internacionais – confirmam que é relativamente baixo o aprendizado de matemática pelos estudantes brasileiros.
Em todas as etapas da Educação Básica avaliadas, os resultados de matemática são inferiores à metade das escalas consideradas.
A análise desses resultados considerando as dimensões das desigualdades brasileiras revelam distâncias significativas entre determinados grupos, como os grupos de renda, raça/cor, região, sexo e território. As populações escolares mais pobres, negros e negras, os meninos e jovens, as populações do Norte e do Nordeste e as pessoas que vivem no campo são os grupos mais prejudicados em seus direitos de aprendizagem da matemática.
Na população adulta, encontramos resultados igualmente insatisfatórios. O Inaf (Índice Nacional de Alfabetismo Funcional) é um indicador, apurado por meio de teste presencial feito com 2.002 entrevistados com idade entre 15 e 64 anos, em todas as regiões do país, obedecendo às proporcionalidades de renda, à localização, à escolaridade, à cor e ao gênero. O teste traz temas de letramento e de numeramento e possui uma escala própria.
Criado em 2000 pela Ação Educativa em parceria com o Instituto Paulo Montenegro, à época vinculado ao Ibope, o indicador já foi apurado em dez edições no intervalo de 17 anos. O estudo dos dados do Inaf revela marcas de nossa história e de nossas desigualdades sociais que se perpetuam nos obstáculos educacionais. No gráfico anterior, observamos que as gerações mais jovens superaram o analfabetismo, mas ainda não alcançaram graus mais desenvolvidos das habilidades de linguagem e matemática. Pouco mais da metade da população jovem, de 15 a 24 anos, havia alcançado o grau intermediário da escala no teste de 2018.
Há inúmeras consequências individuais e coletivas em função do baixo nível de conhecimento e aprendizado em matemática. Um de seus efeitos perversos tem sido evidenciado recentemente: cresce de forma explosiva a presença de jogos de azar e apostas esportivas por meio de sites acessíveis pelos computadores e celulares. Estima-se que, em 2023, os jogos mobilizaram R$ 100 bilhões, impactando diversos setores da economia. Nas famílias de baixa renda, a pesquisa constatou que 76% das despesas com lazer e cultura estão sendo destinados a apostas.
Um pouco do conhecimento da matemática e das questões de probabilidade já serviria de alerta para essa esperança mal dirigida às apostas esportivas. A atual falta de regulação, prevista apenas para o início do próximo ano, tem permitido toda a sorte de sedução para que se confunda investimento e aposta. Além disso, pela pesquisa recente, sabemos que o estudo de graduação está sendo negligenciado em favor da expectativa de ganho nos jogos de azar.
Esse talvez seja o exemplo mais gritante de como a ausência de formação elementar e satisfatória em matemática permite o crescimento de crenças inconsistentes que envolvem os recursos financeiros já escassos de boa parte da população brasileira.
A pesquisa do Instituto Locomotiva identificou que, nos primeiros meses de 2024, 25 milhões de pessoas apostaram em sites de bets. Em cinco anos, já são 50 milhões, um quarto da população brasileira. Na pesquisa de 2024, mais de 80% das pessoas que apostam têm dívidas, inclusive com o nome constante no Serasa.
Além do prejuízo financeiro, disfarçado pelos pequenos ganhos ocasionais que as bets oferecem, já se constata o comprometimento da saúde mental de parte dos jogadores.
A matemática da cidadania está muito além de habilitar as pessoas às operações cotidianas pessoais ou profissionais. Sem prejuízo desse saber básico, é preciso estimular que o conhecimento da matemática seja também um instrumento de emancipação das pessoas face às imensas pressões, para que se renda aos apelos insensatos do ganho fácil ou do ódio por encomenda. A matemática, por sua beleza e seu rigor, deve estimular a abstração, formas de pensar que nos ajudem a criar um mundo mais justo, harmônico e sustentável. A conta é grande, mas talvez ainda seja possível!
Ensinando matemática
Se a aprendizagem de matemática é um desafio para estudantes do mundo todo, o ensino de matemática também é. Na década passada, a Unesco constituiu um grupo especializado para promover uma renovação da docência nos campos das ciências e da matemática. O estudo partiu da constatação de que os avanços tecnológicos demandam novas formas de motivar e ensinar crianças e jovens a aprender e a gostar de matemática.
Os resultados mais recentes do Pisa mostram que mesmo estudantes bem-sucedidos na matemática admitem ter pouco interesse pela área para além das tarefas escolares. Segundo o estudo da Unesco, há certa urgência para fortalecer a formação de docentes – inicial e continuada – e prepará-los para lidar com a disciplina na Educação Básica. Embora a matemática, mais do que nunca, esteja presente em nosso cotidiano, ela é invisível para os usuários de equipamentos operacionalizados a partir de lógicas matemáticas.
Garantir educação de qualidade para todos é um desafio que envolve aspectos específicos da disciplina e preconceitos que criam uma aura de inacessibilidade aos ensinamentos matemáticos. Como observam alguns formadores, há professores que valorizam essa premissa, sublinham as dificuldades da aprendizagem como uma forma de status da disciplina. Reprovar em Matemática já foi visto como uma distinção do professor, que ficava reconhecido pelo seu rigor. Questões de gênero também se rebatem no dia a dia com os alunos. Não é raro ouvir a condenação: “Meninas não são boas em matemática”. Mesmo quando se saem bem em provas, avaliações e testes, é comum que as próprias meninas expressem menor confiança em seu aprendizado.
O documento da Unesco enfatiza a necessidade de promover o chamado letramento matemático. As exigências contemporâneas de conhecimento básico da área são bem superiores àquelas que viveram os atuais professores da disciplina, o que torna urgente programas de formação continuada para que os docentes articulem o saber de sua formação inicial com as demandas atuais. As tecnologias podem ser aliadas poderosas nessa atualização, seja por possíveis usos na escola, seja pelas alternativas de formação a distância disponíveis.
Dado o caráter cumulativo dos conhecimentos matemáticos, deve-se dar atenção particular aos primeiros anos da escolaridade, de modo que os estudantes construam bases sólidas para consolidar os conhecimentos mais complexos em sua trajetória escolar. No entanto, a realidade mostra que, nos Anos Iniciais, o perfil docente é mais generalista – ou polivante –, cuja preparação específica para o ensino da Matemática é insuficiente.
Na visão dos especialistas, o ensino tradicional da disciplina incorre em alguns erros que dificultam a aprendizagem. Alegam, entre outros aspectos, que o ensino é formal, centrado na aprendizagem de técnicas e na memorização de regras. O ensino tradicional ignora as condições culturais dos estudantes, traça relações tênues com o mundo real e emprega aplicações estereotipadas. As práticas experimentais e as atividades de modelagem são raras, sem que haja uso pertinente da tecnologia. Os estudantes têm pouca autonomia no seu trabalho com a matemática e são, frequentemente, limitados nas tarefas de reprodução.
Essas observações, somadas a outras sobre a formação inicial, as condições de trabalho, os recursos didáticos e os padrões de carreira e de remuneração docente mostram que nossos alunos não estão sozinhos no desafio de aprender matemática; os docentes vivem seus próprios obstáculos para traduzir sua formação, compromisso e dedicação em resultados que estejam à altura das demandas matemáticas para a cidadania plena.
Para saber mais
- BBC News: Google pede desculpas por erro racista no aplicativo, 1o de julho de 2015. Disponível em: https://mod.lk/ed26_pa1. Acesso em: 13 set. 2024.
- Jornal da USP: Algoritmos podem levar a aumento da exclusão na sociedade, 12 de abril de 2022. Disponível em: https://mod.lk/ed26_pa2. Acesso em: 14 set. 2024.
- O Globo: Brasileiros estão abrindo mão da graduação para gastar com bets e jogo do tigrinho, diz
- pesquisa, 16 de setembro de 2024. Disponível em: https://mod.lk/ed26_pa3. Acesso em: 16 set. 2024.
- Agência Brasil: “Pandemia” de bets avançou mais rápido que surto da covid-19 no Brasil, 31 de agosto de 2024. Disponível em: https://mod.lk/ed26_pa4. Acesso em: 16 set. 2024.
- O’NEIL, C. Algoritmos de destruição em massa: como a big data aumenta a desigualdade e ameaça a democracia. Santo André, SP: Editora Rua do Sabão, 2020.
- FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 17ª edição, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
- CARRAHER, T.N.; CARRAHER, D.W.; SCHIEMANN, A.D. Na vida, dez na escola, zero: os contextos culturais da aprendizagem da matemática. Cad. Pesq. São Paulo (42): 79-86, agosto 1982. p. 86.
- Indicador de Alfabetismo Funcional – Inaf. Disponível em: https://mod.lk/ed26_pa5. Acesso em: 18 set. 2024.