O mundo pelo celular (Qual mundo?)
Ansiedade, depressão, violência: as doenças que afligem e castigam a vida de crianças e jovens nos tempos atuais.

Texto: Rubem Barros
Juliana tem 17 anos, cursa o 3o ano colegial numa escola pública. Estuda no período noturno desde que conseguiu estágio como menor aprendiz numa empresa de logística em Amparo (SP), município de 70 mil habitantes a 138 quilômetros da capital do estado, onde mora. Ela vive com os pais e duas irmãs menores, de 16 e 14 anos, que estudam das 7h às 17h também em escola pública. As três meninas foram adotadas há cerca de dez anos. Muito jovem, sua mãe biológica engravidou das três, expondo-as a um ambiente de pobreza e vulnerabilidade.
Os pais adotivos, Paulo Sérgio Rosa, 60 anos, e Michele Guimarães, 46, fazem de tudo para ter uma relação de proximidade com as filhas, e de vigilância constante sobre hábitos, estudos e amizades.
Indício disso é o fato de que Juliana, mesmo sendo a mais velha, só tem o uso do celular permitido pelos pais quando vai encontrar amigas ou assistir a algum show. A restrição se deve a episódios acontecidos com a adolescente quando ela tinha 15 para 16 anos e começou a conversar com desconhecidos por meio de redes sociais.
“Eram homens adultos que começaram a pedir que ela enviasse nudes, o que só não aconteceu porque eu descobri antes. Ela ficou muito assustada”, diz Michele ao falar sobre o assédio de que a filha foi vítima. “Sou muito chata com essa questão do uso de tecnologias. Elas têm um lado positivo, mas também têm um enorme lado negativo”, avalia. E parece saber do que está falando, pois no trabalho de comunicação visual que partilha com o marido está sempre em contato com artefatos tecnológicos.
Por esse motivo, as filhas menores obedecem a uma rotina em que o uso do celular só é permitido das 19h às 21h, como um desafogo à estafante rotina escolar. Mesmo assim, o uso é controlado por aplicativos que restringem o horário e os interlocutores e são programados como se elas tivessem menos idade do que realmente têm. No caso de Juliana, ela só irá reaver o celular quando completar 18 anos.
“A escola é cansativa porque exige um gasto grande de energia cerebral, o que vai na contramão do uso do cérebro com os automatismos de muitas mídias digitais.”
Epidemia Contemporânea
Cada vez mais, controles e restrições no uso de dispositivos eletrônicos por parte de jovens e crianças têm se tornado comuns e são vistos como necessários por pais e educadores e até mesmo por alguns jovens, quando percebem que muitas vezes perdem a noção do tempo de uso, em especial quando mergulham nas mídias sociais.
Após anos de deslumbramento com celulares, tablets e computadores, o momento atual pede cautela. Questões como o cyberbullying (muitas vezes relacionado ao aumento de episódios de violência), o aumento de quadros de depressão e ansiedade, a dificuldade de concentração e mesmo as perdas cognitivas mais sensíveis têm composto um quadro que exige reflexão e olhar para o que dizem estudos recentes.
Um artigo científico com uma revisão sobre vários deles, elaborado pelo Núcleo de Ciência pela Infância (NCPI), instituição que tem entre os apoiadores a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, sintetiza pesquisas sobre os efeitos das telas para crianças de 0 a 6 anos. Intitulado “Infância protegida no contexto de telas mídias”, o trabalho, cuja revisão final ficou a cargo de Maria Beatriz Linhares, professora associada aposentada do Departamento de Neurociência e Ciências do comportamento da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, centrou-se em dois aspectos: o tempo de exposição a telas e a quais conteúdos as crianças são submetidas. Voltado principalmente a gestores públicos, traz, também, recomendações ou soluções possíveis, sugerindo o que pode ser feito, como explica a pesquisadora, membro do Comitê Científico do NCPI.
“O impacto é negativo no desenvolvimento infantil, embora os pesquisadores entendam que a alfabetização e a educação digital sejam necessárias para as crianças. Ressalto que há uma diferença entre a alfabetização digital e a mera exposição não mediada, sem controle desses dois aspectos, tempo e conteúdo”, resume Beatriz Linhares.
Para exemplificar o quão prejudicial é o tempo de exposição, ela cita dados de estudo de 2024 publicado pela Tic Kids Online e realizado pelo Cetic, Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), ligado ao Comitê Gestor da Internet do Brasil (CGI.br). O levantamento mostrou que 5% das crianças de 0 a 2 anos, 20% das de 3 a 5 anos e 36% das de 6 a 8 anos têm celulares próprios, o que indica não só uma exposição precoce, mas também com poucos controles por parte de pais e educadores.
Ancorada em diversos estudos internacionais sobre os quais não há contestação em relação ao desenvolvimento infantil, a recomendação é que crianças de 0 a 2 anos não sejam expostas a telas. As de 3 a 5 anos devem passar no máximo uma hora diária à frente delas, ainda assim com conteúdos selecionados, de preferência programas ou jogos educativos, sem excesso de cores e movimentação abrupta de imagens.
“Para as crianças, nada substitui as interações face a face, presenciais, as interações interpessoais com adultos – pais, cuidadores, professores — e com outras crianças. Esse é o grande alicerce para o seu desenvolvimento. Com reciprocidade, diálogo, comunicação olho no olho. Boa parte do desenvolvimento de suas habilidades motoras, cognitivas, emocionais, sociais, das funções executivas, muito importantes para a aprendizagem, depende disso”, alerta.
Ao tempo excessivo se soma a exposição a conteúdos inadequados. As crianças até 6 anos estão em um momento em que seu cérebro é muito permeável ao ambiente. A conectividade cerebral, as questões de plasticidade e a modificabilidade do cérebro são muito ativas nessa idade, e, por isso mesmo, os estímulos precisam ser saudáveis. Se essa conjunção de fatores for inadequada, pode haver aumento da agressividade, da reatividade, desencadeando transtornos variados. Conteúdos adultos como filmes, shows e até mesmo noticiários, principalmente aqueles em que há violência, são causadores de ansiedade e pesadelos que se somam aos impactos sobre o desenvolvimento.
“Um dos trabalhos mostra alteração na estrutura cerebral. Mais uso de mídia digital se associa a menor espessura cortical, maior profundidade sulcal em todo o cérebro, constatações feitas a partir de ressonância magnética”, alerta a pesquisadora. Traduzindo em miúdos, são afetados o processamento visual primário e a função cognitiva de ordem superior, que é atenção dirigida, codificação de memória complexa e cognição social, tudo isso com impactos na aprendizagem e em controles de questões como impulsividade e agressividade. “Precisamos do controle inibitório, que é a nossa regulação”, complementa.

“Esse é o mal das redes sociais. Uso só para ver besteirol, extravasar. Minha mãe fala que estou ficando alienado.” “É muita competitividade.”
Restrições Legais
Se no âmbito familiar é crescente o número de pais com maior preocupação acerca do uso dos dispositivos, em especial por causa das mídias sociais, no plano das escolas, a expectativa é que haja uma mudança de cenário, em função das novas leis que proíbem o uso de celulares, exceção feita ao uso pedagógico conduzido pelos docentes.
No plano nacional, a lei que proíbe o uso de celular e outros dispositivos digitais portáteis foi sancionada em fevereiro de 2025. Em São Paulo, a regra já estava valendo desde o início do mesmo ano, aprovada no final de 2024. A proponente, a deputada Marina Helou (Rede), diz ter visitado muitas escolas e conversado com professores que relataram dificuldade de fazer os alunos prestarem atenção e aprenderem, além de ter visto recreios silenciosos, com crianças vidradas nas telas.
“Ninguém é contra a tecnologia, em especial como suporte educacional. Mas as redes sociais são feitas para viciar o cérebro pela dopamina, as empresas buscam o lucro a partir do vício”, opina. Para ela, a restrição nas escolas é um primeiro passo em busca de maior conscientização social. Uma saída desejável é a reocupação de espaços públicos como parques, propiciando às crianças contato com a natureza.
Para a fonoaudióloga, psicopedagoga e neurocientista Telma Pantano, cujos estudos se voltam ao desenvolvimento da linguagem, um problema central no uso dos eletrônicos são os processos passivos, automatizados, que exigem pouco do cérebro. Ela lembra que nosso conhecimento sobre o seu funcionamento cresceu muito nas últimas décadas, quando se começou a ter maior dimensão da área pré-frontal, região que se desenvolve até quase 25 anos de idade. Reafirmando os relatos da professora Beatriz Linhares, a neurocientista lembra que o ambiente sociocultural a que estamos expostos ajudará a moldar controles, pensamento e memória.
“A escola é cansativa porque exige um gasto grande de energia cerebral, o que vai na contramão do uso do cérebro com os automatismos de muitas mídias digitais”, frisa. Ela lembra, também, que muitos jovens, quando privados de celulares, reclamam de tédio, o que pode ter um efeito positivo, fazendo com que procurem algo para fazer, de forma ativa.
Esses automatismos, ou uma espécie de doping cerebral que muitas vezes nos faz perder a noção do tempo à frente das telas, têm sido um dos maiores desafios em sala de aula, mesmo após a proibição. Quem diz é a coordenadora pedagógica Sandra Santella, mestre e doutora em Educação pela PUC-SP. Ela trabalha na Emef Remo Rinaldi Naddeo, no Morro Doce, bairro periférico na Zona Oeste de São Paulo.
“Nos processos de formação que faço, é recorrente a queixa de professores sobre o uso das mídias em sala de aula. Mesmo depois da lei, muitos alunos não se desconectam, até para se comunicar com os pais. Os alunos ficam desatentos, dispersos. Os professores reagem de formas diferentes. Uns são mais rígidos, tomam o celular, outros buscam fazer acordos”, relata Santella.
Após a adoção da lei, ela tentou um movimento diferente, propondo para as famílias a leitura de textos sobre o funcionamento do cérebro em função das mídias. “Eles aceitaram, entenderam. Não dá para descer o martelo com a lei na escola. É preciso ter o apoio das famílias, para que os alunos não tragam os celulares. Com isso, conseguimos uma diminuição”, explica.
A coordenadora expõe que é difícil para os estudantes tomar a decisão de não usar o celular, em função do pouco controle sobre seus impulsos e a necessidade do prazer superando a consciência. Mas há pontos que tornam a questão sensível também para eles, como o cyberbullying. A professora do laboratório de internet propôs um trabalho que acabou resultando numa campanha interna, chamada Stop Bullying.
Apesar de não registar casos graves, Santella mantém atenção permanente para situações potenciais, já tendo sido obrigada a intervir até mesmo numa desavença entre mães. “Um aluno tirou foto de uma menina que havia pintado e publicou. Começaram a criar memes com ela, e a mãe da garota foi tirar satisfação com a mãe do menino.”
Mas, assim como a campanha contra o bullying, os professores têm feito usos que conseguem a adesão dos estudantes, como jogos e quizzes com os tablets da escola ou a utilização do celular para registros de coleta de dados de pesquisa na aula de Ciências.

Ao tempo de tela excessivo se soma a exposição a conteúdos inadequados. As crianças até 6 anos estão em um momento em que seu cérebro é muito permeável ao ambiente. A conectividade cerebral, as questões de plasticidade e a modificabilidade do cérebro são muito ativas nessa idade, e, por isso mesmo, os estímulos precisam ser saudáveis.
Minha Casa, Minhas Regras
Quando há diálogo e escuta, é mais fácil que os adolescentes entendam as ponderações do mundo adulto. É o caso de Ykaro Zocchi, 17 anos, filho de pais jornalistas. Ele só ganhou seu celular aos 14 anos, quando todos os colegas já tinham. Mas mesmo hoje ele está submetido à disciplina da casa: depois das 20h, nada de eletrônicos.
Estudante do médio técnico de Biologia na escola Guaracy Silveira, ele conta que, quando entrou no colégio, viu que todos tinham Instagram. Instalou à revelia dos pais, que descobriram e acabaram negociando uma permissão de uso, mas desde que sua irmã mais velha, de 31 anos, tivesse acesso à conta. O mesmo vale para o TikTok. Do X (ex-Twitter), não gosta. “Todo mundo fica se atacando, fazem pelo celular coisas que não tem coragem de fazer ao vivo”, diz.
Como outros adolescentes, mostra repulsa ao cyberbullying, do qual diz não ser vítima, pois quando tentaram praticar com ele não se mostrava afetado e ainda ajudava os amigos a revidar. “Esse é o mal das redes sociais. Uso só para ver besteirol, extravasar. Minha mãe fala que estou ficando alienado”, diz Zocchi, que não deixa de se mostrar crítico com o exibicionismo de quem fica expondo fotos de viagens para outros países. “É muita competitividade.” As regras paternas, porém, acabam por mostrar um desejo de amadurecimento. “Tenho desejo de sair de casa quando tiver 18 ou 19 anos. Aí vai ser minha casa, minhas regras. Aqui, me sinto numa bolha de cristal, fico imaturo. Quero criar essa maturidade”, reflete o jovem.
Amadurecer, Caminho Difícil
A lógica de alta exposição que rege as redes sociais faz com que muitos jovens passem a idealizar padrões de beleza e consumo quase sempre irreais. De maneira geral, isso causa impacto maior nas meninas, mas também abala os meninos, levando-os à introspecção e à dependência de jogos e pornografia, ofertas massificadas com a internet, como mostram os vários casos relacionados a apostas nas bets.
Para Pedro Pan, psiquiatra da Unifesp e membro do Instituto Ame Sua Mente, os altos índices de ansiedade e depressão que têm sido registrados não só no Brasil, mas em todo o mundo, são visíveis já faz algum tempo. E, em sua visão, ainda não há evidências suficientes de que os eletrônicos são a grande causa. Não quer dizer que não façam parte do quadro, mas o mais provável é que tenhamos respostas multifatoriais.
“Estamos começando a ter mais estudos sobre as causas, há hipóteses, mas já enfrentamos outras grandes mudanças tecnológicas. Pode até ser resultado da tecnologia, mas não da interação direta”, opina, lembrando, por exemplo, que a crise econômica de 2014 registrou aumento de ansiedade e depressão, segundo pesquisa da FGV.
O que não há dúvida, porém, é que a internet trouxe alcance e velocidade exponenciais, espalhando informações, verídicas ou não, privadas ou não, de forma muitas vezes incontrolável.
“Comportamentos como bullying sempre existiram, mas conhecíamos menos desses impactos. O cyberbullying tem outra amplitude, não é mais uma sala de aula, é toda uma comunidade que toma conhecimento de algo. E antes essas coisas eram mais fáceis de esquecer, agora ficam registradas e vão sendo reeditadas”, reflete o psiquiatra.
A proibição, no entanto, traz um dilema. “Proibir é indício de que outras possibilidades falharam. No âmbito escolar, parece melhor, mas é muito recente. De alguma forma estamos perdendo a oportunidade de desenvolver a capacidade de uma relação mais crítica e ponderada com a tecnologia”, diz Pan.
O que se coloca em questão é até quando as restrições externas darão conta da regulação dos comportamentos. Com crianças menores, tudo indica que sejam recomendáveis. À medida que elas crescem, no entanto, resta a dúvida sobre qual o receituário mais adequado.
Rubem Barros
É jornalista e editor especializado nas áreas de educação e cultura. Atualmente é editor, consultor e curador editorial. Possui experiência nas áreas de planejamento, desenvolvimento de projetos, articulação de parcerias, criação de produtos editoriais, concepção e realização de eventos, coordenação de equipes e atuação integrada com áreas de apoio.
Para Saber Mais
- BRASIL. Lei nº 15.100, de 13 de janeiro de 2025. Dispõe sobre a utilização, por estudantes, de aparelhos eletrônicos portáteis pessoais nos estabelecimentos públicos e privados de ensino da educação básica. Brasília, DF: 2025. Disponível em: https://mod.lk/ed27_nt1. Acesso em: 21 jul. 2025.
- CETIC.BR. TIC Kids Online Brasil – Pesquisa sobre o Uso da Internet por Criançase Adolescentes no Brasil 2024. São Paulo, 2024. Disponível em: https://mod.lk/ed27_nt2. Acesso em: 23 jul. 2025.
- INSTITUTO AME SUA MENTE. Organização da Sociedade Civil que desenvolve projetos pautados em pesquisas científicas com foco na promoção da saúde mental. São Paulo, 2020. Disponível em: https://mod.lk/ed27_nt3. Acesso em: 22 jul. 2025.
