A hora e a vez dos portfólios na educação infantil
Como estruturar portfólios que evidenciem os processos de aprendizagem na infância e tornar as crianças protagonistas de suas trajetórias.
texto Denise Tonello
A pandemia do novo coronavírus trouxe à tona, mais uma vez, o debate sobre o papel e a importância da Educação Infantil no processo de desenvolvimento da criança. Na tentativa de compartilhar evidências de como e quanto a criança aprende/aprendeu, a prática do uso de portfólios (que acolhe as exigências da Base Nacional Comum Curricular) segue amplamente discutida e utilizada — principalmente pensando na perspectiva do ensino remoto.
Mas será que o que chamamos de portfólios são verdadeiramente portfólios? Quais os princípios teóricos que caracterizam um portfólio? O que é preciso considerar ao longo do processo de organização e elaboração desse importante instrumento de avaliação?
Nas linhas a seguir, buscamos evidenciar princípios norteadores que poderão embasar a elaboração de portfólios, sejam eles físicos ou virtuais.
Portfólio e o seu significado
De acordo com o site Dicio, a palavra portfólio vem do italiano portafoglio; apartada do contexto escolar significa “agrupamento, ou listagem, dos produtos ou serviços oferecidos por uma empresa, para divulgação, ou coletânea dos trabalhos de um artista, com fotos, para divulgação; […] um tipo de pasta em papel consistente, normalmente dobrado, utilizado para armazenar papéis ou quaisquer materiais em seu interior, destinado para guardar um conjunto específico de papéis ou para manter coleções de alguma coisa”.
Desde a década de 1980, entretanto, não apenas a palavra, mas também a prática passaram a aparecer no ambiente escolar descontextualizadas das concepções de ensino e aprendizagem, tornando-se quase um pesadelo para os educadores. Isso acontecia porque muitos portfólios se embasavam na ideia de divulgar o “melhor do melhor”, trazendo apenas atividades bonitas, caprichadas e bem-feitas, transformando-se em scrapbooks e coletâneas exageradas, e até mesmo em certa competição para ver quem produzia o mais belo dos portfólios.
Visto desta maneira, este que começava a ser compreendido como um instrumento de avaliação passou a demandar um enorme trabalho por parte dos educadores, tornando-se algo burocrático, oferecido por muitas instituições como um diferencial pedagógico, mas que, de verdade, pouco demonstrava o processo de aprendizagem vivenciado pelo estudante.
Pensar em portfólios e seu uso no contexto escolar demanda um trabalho de reflexão e desconstrução de práticas e metodologias e de mudanças de paradigma acerca dos processos avaliativos percorridos pelo aprendiz. Mesmo entendendo que cada instituição tem uma realidade e concepções diversas que embasam seu Projeto Político Pedagógico (PPP), para afirmar que adotamos os portfólios não podemos renunciar a alguns princípios norteadores, princípios estes que, além de garantir o protagonismo e a participação do estudante na análise dos processos (independentemente da faixa etária), embasam-se nas teorias de práticas formativas que compreendem que a função da avaliação é a de informar aos envolvidos no processo o que foi aprendido, o que falta aprender e quais serão os caminhos para a conquista dos objetivos.
Para isso, devemos partir da concepção de que, no contexto escolar, portfólio pode ser definido como um instrumento de avaliação utilizado para evidenciar o processo de aprendizagem da criança, instrumento esse que deve representar, de forma clara, sucinta e objetiva, o caminho percorrido da aprendizagem ao longo de determinado período.
Como implementar uma cultura de portfólios?
O termo “documentação pedagógica” é citado e amplamente explorado nas obras de Ovideo Decroly, Célestin Freinet, Maria Montessori e autores atuais como Loris Malaguzzi.
Para organizar um portfólio consistente que traduza, da maneira mais fidedigna possível, a riqueza do desenvolvimento de cada um, o educador precisa mudar paradigmas e organizar sua prática em função da coleta e organização de evidências significativas que possam mapear o percurso dos educandos. Assim, de nada adianta coletar e guardar em uma pasta uma infinidade de fotografias, atividades, vídeos e relatórios se não planejarmos utilizá-la como suporte para mediações que conduzam às percepções dos processos de aprendizagem em desenvolvimento e que contribuam para a criança refletir sobre a realidade vivida, como parte integrante dessa avaliação. Essa tarefa, bastante desafiadora, demanda um planejamento coerente e a clareza da intencionalidade de algumas ações.
Para a coleta de evidências e a comunicação dos percursos, o professor pode contar com diferentes instrumentos de avaliação: a observação, o registro (de atividades, fotografias, áudios ou vídeos), os diários reflexivos, os relatórios dissertativos, as pautas de observação organizadas a partir de indicadores e critérios, a autoavaliação, entre outros. O portfólio também é um instrumento de avaliação, mas, enquanto alguns instrumentos são produzidos e utilizados pelo professor, ele demanda uma participação ativa da criança, seja na escolha do que colocar em seu portfólio, seja na análise de suas aprendizagens, ou ainda no compartilhamento de caminhos para conquistar o que ainda não foi conquistado.
Uma vez que as crianças são protagonistas e participam da avaliação — sempre com a mediação do professor —, considera-se, como destaca Lea Depresbiteris, que um portfólio deve respeitar os princípios teóricos que o embasam e contribuir com o desenvolvimento de inúmeras capacidades, dentre elas: a metacognição, uma vez que a criança pode refletir sobre o que aprendeu; e a autorregulação, que propõe, a partir da reflexão, a busca pela melhoria da aprendizagem. Além disso, ajuda a criança a sentir-se como parte do processo uma vez que tem a oportunidade de compreender progressos e conquistas.
Princípios norteadores dos portfólios
Para elaborar portfólios, não existe um modelo ou uma receita. Todavia, é fundamental não perder de vista alguns aspectos que auxiliam em sua organização e apresentação à comunidade.
I. INTENÇÃO
Um portfólio fala por si só. Para construir uma narrativa que evidencie o desenvolvimento do educando, precisamos ter total clareza da sua intencionalidade para que todas as ações (do planejamento à seleção e avaliação de amostras e atividades) estejam vinculadas à ideia de construir uma narrativa consistente.
II. OBJETIVO
Portfólio é um instrumento a serviço de retratar aprendizagens. Assim, deve reunir as atividades escolhidas pelo professor, mas também algumas que a criança considera relevantes. O professor deve ter um papel de mediador nessa seleção, esclarecendo os critérios de escolha. Aqui, vale lembrar que o critério não é apenas o da excelência, mas sim a seleção de trabalhos que demonstrem a trajetória da aprendizagem do educando.
III. FOCO
Na escola, as crianças realizam inúmeras atividades e são avaliadas continuamente. Entretanto, para organizar narrativas que evidenciem a aprendizagem e que possam caracterizar um portfólio, sugere-se sempre eleger um foco que sirva como um fio condutor para a organização e seleção de tais tarefas e projetos.
IV. TEMPOS DE AVALIAR
Cabe ao professor garantir, no planejamento diário, semanal e/ou mensal, momentos de retomada e encaminhamento para que a avaliação possa ser realizada processualmente, prevendo os tempos de avaliar também como parte da rotina escolar.
Um mergulho nos portfólios digitais
Quando falamos em portfólios, uma das principais dúvidas é se eles podem ser digitais. Costumo responder sempre com outra pergunta que leve o educador a refletir se os princípios de evidenciar aprendizagens, participação da criança (tanto na escolha, quanto na análise de suas aprendizagens) e garantir que esse instrumento de avaliação esteja a serviço da reflexão dos processos estão preservados.
Sabemos que os portfólios atendem a diferentes propósitos e que são uma ferramenta para compartilhar conquistas com colegas, familiares e educadores, gerando confiança e entusiasmo em relação ao aprendizado. Mediante as amostras que evidenciam os percursos de evolução, o professor pode refletir sobre as melhores intervenções, as famílias podem acompanhar os progressos e as crianças podem refletir sobre suas conquistas.
Assim, caso a opção seja por organizar um portfólio digital, é imprescindível garantir a coleta e digitalização de evidências de aprendizado e crescimento, os tempos de avaliar, além de incluir a participação da criança para que ela não seja apenas espectadora de um processo do qual faz parte, mas sim que seja protagonista.
O ideal é que o portfólio, seja digital ou físico, tenha a seguinte estrutura:
- Introdução: breve descrição da intencionalidade e o foco de seleção — desenvolvimento da oralidade, escrita do nome, escrita convencional, registro para a resolução de problemas, entre outros aspectos.
- Registros: imagens de atividades, fotos, breves relatos com uma descrição da proposta e dos objetivos de aprendizagem, além das datas e dos locais em que eles foram realizados.
- Avaliação do aluno: momentos de conversa ao longo do processo para que a criança possa, com a mediação do professor, observar seu portfólio, avaliar as mudanças e as aprendizagens e realizar sua autoavaliação com uma parte reservada para os seus comentários.
- Avaliação do professor: após a análise periódica com o aluno, o educador tece comentários que complementem a reflexão da criança, dando consistência às amostras e validando os processos de aprendizagem.
Portfólios demandam que o professor atue como pesquisador, contextualizado a uma série de práticas formativas que compreendem a avaliação como um meio e não como um fim. Planejado dessa maneira, pode trazer à criança inúmeras possibilidades para que, de fato, compreenda seu papel no processo de aprendizado e na avaliação e entenda o valor das tarefas atribuídas como reflexo de uma trajetória que ela conhece, viveu e pode refletir sobre, ou seja, uma história que é dela, somente dela.
DENISE TONELLO é pedagoga formada pela USP, mestra em Educação (PUC-SP) e psicopedagoga. Atua como coordenadora educacional e pedagógica no Colégio Miguel de Cervantes e como assessora em escolas públicas e privadas. Como idealizadora e coordenadora do Centro de Formação Saber Mais e Mais e formadora de professores, colabora com o Instituto Avisalá, Prisma (Centro de Estudos do Colégio Santa Maria), Casa Diálogos, Mathema, Undime, Grupo Santillana em cursos presenciais e a distância. Colabora com a produção de materiais didáticos e publicações para professores na Editora Moderna, Cultura Escrita, Revista Nova Escola e Editora Triolet.
Para saber mais
- DAHLBERG, G.; MOSS, P.; PENCE, A. Qualidade na educação da primeira infância: perspectivas pós-modernas. Porto Alegre: Artmed, 2003.
- CHAVES, I. S. Porta-fólios: no fluir das concepções, das metodologias e dos instrumentos. In: ALMEIDA, L.S.; TAVARES, J. (orgs.). Conhecer, aprender e avaliar. Porto: Porto Editora, 1998.
- DEPRESBITERIS, L.; TAVARES, M. R. Diversificar é preciso…: instrumentos e técnicas de avaliação da aprendizagem. São Paulo: Editora Senac, 2009.
- PARENTE, Maria Cristina C. A construção de práticas alternativas de avaliação na pedagogia da infância: sete jornadas de aprendizagem. Instituto de Estudos da Criança. Braga: Universidade do Minho, 2004.
- SHORES, Elizabeth; GRACE, Cathy. Manual de Portfólio: um guia passo a passo para o professor. São Paulo: Artmed, 2001.
- Google Jamboard: mod.lk/ed21_nt1. Acesso em: 12 ago. 2021.
- Kawek: mod.lk/ed21_nt2. Acesso em: 12 ago. 2021.
