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A nova face do ensino religioso nas escolas

Como a BNCC modificou o processo de ensino e aprendizagem na área de Ensino Religioso.

texto Renan Nascimento

O ensino religioso na educação brasileira passou por significativas mudanças teórico-metodológicas ao longo das últimas quatro décadas. A transformação mais significativa veio com a BNCC (Base Nacional Comum Curricular), que referendou o Ensino Religioso como área do conhecimento e sistematizou-o como um componente curricular. Com o status de área, o Ensino Religioso tem definido como objeto o conhecimento religioso produzido pelas áreas das ciências humanas e sociais, principalmente as Ciências da Religião, que se ocupam em investigar os fenômenos religiosos manifestados em todas as culturas e povos. Assim, o Ensino Religioso migra de uma concepção catequética/confessional para uma configuração de unidade plural, como um componente que se detém em estudar os aspectos comuns a todas as tradições religiosas, a saber, os símbolos, os ritos, os mitos, as crenças, os textos, os princípios éticos e outros. Pela primeira vez está posta uma base curricular comum para o Ensino Religioso em qualquer escola do Brasil, uma espinha dorsal composta de unidades temáticas e objetos de conhecimento que ajudam a desenvolver habilidades e competências específicas nas crianças e nos jovens.

Competências específicas de ensino religioso para o Ensino Fundamental

  • Conhecer os aspectos estruturantes das diferentes tradições/movimentos religiosos e filosofias de vida, considerando pressupostos científicos, filosóficos, estéticos e éticos.
  • Compreender, valorizar e respeitar as manifestações religiosas e filosofias de vida, suas experiências e saberes, em diferentes tempos, espaços e territórios.
  • Reconhecer e cuidar de si, do outro, da coletividade e da natureza, enquanto expressão de valor da vida.
  • Conviver com a diversidade de crenças, pensamentos, convicções, modos de ser e viver.
  • Analisar as relações entre as tradições religiosas e os campos da cultura, da política, da economia, da saúde, da ciência, da tecnologia e do meio ambiente.
  • Debater, problematizar e posicionar-se frente aos discursos e práticas de intolerância, discriminação e violência de cunho religioso, de modo a assegurar os direitos humanos no constante exercício da cidadania e da cultura de paz.

Essa mudança proposta na BNCC tem um grande impacto nas metodologias, nas práticas pedagógicas, no planejamento anual, no plano de aula, nos projetos, na formação de professores e no livro didático. Algumas reflexões, conexões e possibilidades: 

Reconhecimento das alteridades e respeito à diversidade

Ao colocar as diretrizes para o Ensino Religioso, a BNCC explicita dois aspectos importantes e interligados: o reconhecimento das alteridades e o respeito à diversidade cultural e religiosa que configuram a relação com o sagrado no Brasil. Nosso país é um verdadeiro mosaico composto de diversas tradições religiosas e filosofias de vida, uma cultura mesclada e marcada pelas crenças de povos originários e pela fé religiosa dos imigrantes que aqui se fixaram.

Nesse contexto, o Ensino Religioso assume o papel de ser instrumento na educação de crianças e jovens para o conhecimento e a vivência da “ética da alteridade”, cujos princípios norteiam a convivência acolhedora e dialógica com pessoas que cultivam ideias, visões de mundo e crenças diferentes. Ao contrário do que muitos pensam, reconhecer as alteridades e respeitar a diversidade existente na sociedade contribui para valorizar e aprofundar a própria identidade. Hans Kung, teólogo suíço, deixa claro em seus escritos que abrir os ouvidos e os corações para conhecer a diversidade de experiências espirituais e tradições religiosas não exclui o conhecimento e o envolvimento com a própria religião, suas crenças ou sua filosofia de vida. 

Aquele que tem como propósito dialogar e entrar em comunhão com os outros sem conhecer suas próprias convicções e crenças, com seus limites e possibilidades, constrói mais muros do que pontes, aumenta a distância entre as pessoas. Conhecer-se com profundidade é o princípio fundamental para o conhecimento dos outros. Quem não se conhece e não tem clareza de seus limites e de suas convicções e crenças assenta sua vida nas incertezas e inseguranças e é movido pelo medo de abrir-se aos outros nas suas diferenças. A identidade não exclui a alteridade e vice-versa. Elas se complementam. 

Uma perspectiva interdisciplinar 

Assim como não há espaço para fechar-se numa identidade, o Ensino Religioso não pode isolar-se de outras áreas do conhecimento, mas, tendo clareza de seu fundamento, de seu objeto, de sua epistemologia e de seu escopo, precisa abrir-se ao diálogo e à comunhão com outros saberes, práticas pedagógicas e componentes curriculares com a consciência de que nenhum saber por si só é suficiente para apreender a realidade que o ser humano busca compreender. Assim sendo, um Ensino Religioso que pretende formar pessoas em todas as suas dimensões deve propiciar um processo de ensino e aprendizagem interdisciplinar, sabendo que o sagrado está presente na natureza, na música, na dança, na literatura, na história, no tempo, no espaço, enfim, em tudo o que nasce da razão, da intuição, do encantamento com a riqueza da vida, do indizível que de alguma maneira se concretiza na obra humana. Torna-se possível dar mais profundidade e sentido ao conhecimento religioso que, conectado com outras áreas e saberes, possibilitará a formação integral de crianças e jovens nas escolas do Brasil.

O Ensino Religioso e os ODS 

Na mesma linha da interdisciplinaridade, está a importante conexão do Ensino Religioso com iniciativas e projetos propostos por pessoas, países, instituições e organismos locais e globais. Uma dessas iniciativas é a dos “Objetivos de Desenvolvimento Sustentável” (ODS) da Agenda 2030, da ONU. Alguns desses objetivos podem ser trabalhados numa inter-relação com os objetos de conhecimento, habilidades e competências no Ensino Religioso. Como proposto na BNCC, o componente curricular oferece aos estudantes a possibilidade de refletir sobre temas atuais e agir como pessoas e cidadãos para a transformação das realidades sociais, econômicas, políticas e ambientais, tais como os explicitados nos seguintes ODS: “Objetivo 1. Acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares; […] Objetivo 3. Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades; Objetivo 4. Assegurar a educação inclusiva e equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos; […] Objetivo 11. Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis; […] Objetivo 15. Proteger, recuperar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentável as florestas, combater a desertificação, deter e reverter a degradação da terra e deter a perda de biodiversidade; Objetivo 16. Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis. […]”.

Que são os ODS?

A sigla “ODS” é utilizada para identificar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, que constituem um apelo a pessoas, povos, tradições religiosas e instituições a agir para extinguir a pobreza, cuidar do meio ambiente e protegê-lo e garantir paz, justiça e qualidade de vida a todos os seres humanos.

Ensino Religioso e Pacto Educativo Global

Assim como as ODS, o Ensino Religioso pode contribuir com o Pacto Educativo Global, proposto pelo papa Francisco em 2020. Tanto um quanto outro têm como objetivo formar e convocar pessoas, tradições religiosas e instituições educativas a se unirem num compromisso pelo desenvolvimento integral de crianças e jovens para que se engajem no projeto de construção de um novo mundo cujos principais fundamentos são: o serviço gratuito e desinteressado às pessoas, principalmente as mais vulneráveis, como os pobres, as crianças e os idosos que estão imersos na cultura do descarte da sociedade atual; o cuidado e a responsabilidade com o meio ambiente e toda a sua biodiversidade por meio de atitudes simples e sustentáveis; o desenvolvimento de uma cultura do encontro, do diálogo e da convivência harmoniosa com os outros; a adoção de gestos mais humanos, inclusivos, fraternos, justos e pacíficos; o discernimento diante das possibilidades e dos desafios que a internet e as relações virtuais apresentam às novas gerações; a atenção e o cultivo da interioridade nas crianças e nos jovens para que possam parar, silenciar, refletir, ouvir, escutar-se e “sentir” a transcendência; o desejo e a esperança dos jovens de que o mundo pode mudar para melhor com uma revolução da ternura que destrua a globalização da indiferença, da discriminação, do preconceito e da intolerância religiosa. 

Livro didático e metodologias ativas em Ensino Religioso

Se a BNCC provocou tantas mudanças no currículo de Ensino Religioso, ela também impactou no uso das metodologias ativas em sala de aula e fez com que as editoras fizessem profundas transformações nos livros didáticos, como é o caso da coleção Entre amigos da Editora Moderna que está sendo reescrita considerando essa perspectiva.  Os livros didáticos de Ensino Religioso devem propor aos estudantes e aos professores o uso de metodologias ativas como sala de aula invertida, resolução de problemas, aulas híbridas, cultura maker, aprendizagem por projetos etc. Devem oferecer atividades lúdicas, investigativas, instigantes e interdisciplinares, trabalhos em grupo, encontros dialógicos, momentos de autoconhecimento e meditação, imagens que complementam os textos e sensibilizem para o sagrado presente nas diversas realidades, conteúdos teóricos apresentados em uma linguagem próxima aos estudantes: simples, atual e convidativa. Podem propiciar o uso ético e educativo das ferramentas digitais, além de trabalhar valores que os instiguem a agir de maneira positiva na convivência com os outros, no cuidado com o meio ambiente e na relação com a transcendência.


RENAN NASCIMENTO é licenciado em Filosofia pela Fundação Educacional de Brusque (1995) e em Pedagogia pela Faculdade Claretiano (2016); bacharel em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2001), pós-graduado em Psicopedagogia pela Universidade Estadual de Minas Gerais (1997) e em Ensino Religioso pela Universidade Católica de Brasília (2008); músico; leitor técnico e elaborador de conteúdo para livros didáticos; orientador educacional e coordenador da área de Ensino Religioso do Colégio São Luís, em São Paulo, desde 2002.


Para saber mais

  • BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2017. 
  • SILVEIRA, E. S.; JUNQUEIRA, S. (org.). O Ensino Religioso na BNCC: teoria e prática para o Ensino Fundamental. Petrópolis: Vozes, 2020.
  • Instrumentum Laboris. Pacto Educativo Global. Disponível em: mod.lk/ed21_eb1. Acesso em: 9 jul. 2021. 
  • Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Disponível em: mod.lk/ed21_eb2. Acesso em: 9 jul. 2021. 
  • BACICH, L.; MORAN, J. Metodologias ativas para uma educação inovadora: uma abordagem teórico-prática. Porto Alegre: Penso, 2018. 
  • KUNG, H. Religiões do mundo: em busca de pontos comuns. Campinas: Verus, 2004. 
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