Maria Nilde Mascellani, a visionária da formação integral
Uma história de luta e uma vida dedicada a formar cidadãos para o mundo.
Por: Cauê Cardoso Polla
Quando, no século XVIII, Jean Jacques-Rousseau escreveu que a educação era uma arte, mal poderia imaginar que até hoje ele seria mal compreendido. Queria dizer com isso que não há exatidão possível no mundo da educação e que é fundamental experimentar. Experimentar porque os tempos mudam, as gerações mudam, e o mundo nunca permanece o mesmo. Era esse o espírito de Maria Nilde Mascellani: se o homem tem uma vocação, ela deve ser despertada pela educação, e somente indo além do convencional isso pode acontecer.
Nascida em 1931, estudou na Escola Padre Anchieta (no bairro do Brás, na capital paulistana), onde seguiu o Curso Normal. Ao se formar professora primária, ingressou no curso de pedagogia da Faculdade de Educação da USP. Lecionou em diversas escolas públicas no Estado de São Paulo. Em 1959, foi convidada para trabalhar na cidade de Socorro, vindo a integrar o quadro do Instituto de Educação, trabalhando com as Classes Experimentais, que seguiam modelos pedagógicos franceses de vanguarda. A partir de propostas inovadoras, a vocação de Maria Nilde ficou cada vez mais evidente.
Em 1961, um Decreto Estadual criou o Serviço de Ensino Vocacional. Maria Nilde foi convidada para coordenar esse programa visionário. Vocacional aqui não é uma educação para uma profissão, como quando dizemos “teste vocacional”. Antes, vocacional se refere mais àquela vocação que Paulo Freire chamaria de vocação do ser humano para ser mais. A educação vocacional, assim, seria aquela capaz de despertar o indivíduo para a sua própria humanidade. As escolas que seguiam este sistema ofereciam o ensino secundário em quatro anos, de forma integral. A ideia de formação integral e crítica era muito presente, como se pode notar pelo extenso currículo com música, teatro, educação religiosa (na qual se estudavam as religiões cristãs e africanas), passando por estatística, matemática, até educação contábil e fotografia. Os professores e professoras abordavam temas até então trabalhados transversalmente. Várias das estratégias, hoje difundidas como estudo do meio, eram amplamente adotadas.
Tamanha inovação não passaria despercebida pelo Regime Militar recém-instaurado com o Golpe de 1964. Com a criação do AI-5, em 1969, as escolas do SEV foram invadidas, coordenadores e professores presos, sendo oficialmente extinto o programa que havia inovado o cenário educacional. Em 1970, com base no AI-5, Maria Nilde foi oficialmente aposentada como professora. Com uma vida devotada à educação, criou logo em seguida, com colaboradores, o Renov, uma assessoria educacional, que também foi invadida e impedida de funcionar pelos militares, em 1974. Presa, acusada e processada pelo governo militar, foi torturada, o que afetou ainda mais sua frágil saúde. Já inocentada de todas as acusações, passou a integrar o corpo docente da PUC de São Paulo, no qual trabalhou incessantemente pelo resto de sua vida.
Maria Nilde Mascellani dedicou-se plenamente à educação brasileira, sempre próxima dos problemas sociais que afligiam – e ainda hoje afligem – a nossa sociedade. Sua atenção à educação popular se reflete em seus inúmeros trabalhos, bem como no doutorado que viria a defender em 1999, sobre a educação do trabalhador desempregado, pouco antes de sua morte. Um legado inestimável que não pode ser esquecido nesses tempos em que a educação vem sendo forçada a se tornar uma simples mercadoria.