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Quando entrar no chat significa aprender

Chatbots e a inteligência artificial entraram de vez nas rodas de conversa da educação. Quais perguntas você deve se fazer para inseri-los no cotidiano da sua escola?

Texto Fernando Herranz, com colaboração de Gabriela Dias | Ilustração Leandro Lassmar

Nas últimas férias, nosso colega Fernando Herranz, da Espanha, presenciou a seguinte situação enquanto seu filho Rodrigo, de dois anos e meio, tomava mamadeira pela manhã. Por descuido do pai, Rodrigo pegou o celular e, sob seu olhar atento, manteve a seguinte conversa espontânea com o dispositivo:

Rodrigo: E aí, Siri, você está aí?

Siri: Estou aqui.

Rodrigo: Você quer mamadeira?

Siri: Tudo o que eu preciso está na nuvem.

Para aqueles que não conhecem a Siri, ela é o chatbot (ou “robô conversacional”) embutido no sistema operacional dos dispositivos da Apple. Outras grandes empresas de tecnologia, como Google, Microsoft e Amazon já possuem tecnologias semelhantes, todas baseadas em inteligência artificial (IA).

A história pode soar inofensiva, mas já é possível imaginar um futuro não muito distante em que assistentes virtuais, baseados em voz ou não, ocupam um papel de destaque na vida de crianças e jovens. Afinal, a relação com a máquina é natural para essas gerações e está no centro de seus processos de aprendizado e de seu dia a dia.

Pensando nisso, o que podemos fazer, como educadores, para nos prepararmos para o impacto que a IA deve causar no mundo educativo? A análise a seguir é uma reflexão coletiva da qual participaram várias pessoas da área de tecnologia e aprendizagem, com diferentes pontos de vista, no Brasil e na Espanha.

Primeira parada: um chat… o quê?

Antes de mais nada, é preciso se familiarizar com a tecnologia. É possível que você até já seja usuário, e esteja acostumado a acionar seu celular ou computador por voz. Esse é o primeiro passo para não ser pego de surpresa pela explosão que, nos próximos anos, essa nova modalidade de relação entre humanos e máquinas deve experimentar.

A segunda etapa é entender o que são robôs conversacionais, ou chatbots. Em resumo, eles são programas treinados para manter uma conversa e, às vezes, para aprender mais sobre nós. Essas conversas podem ser realizadas em texto, áudio, vídeo etc. Atualmente, elas são utilizadas, sobretudo, em contextos comerciais e de atendimento a clientes.

Para Marta Bonet, doutora em Filosofia e Ciências da Educação, essas inovações decorrem do fato de que hoje as máquinas podem, finalmente, utilizar a linguagem humana. “Agora podemos interagir com elas em nossa própria linguagem, o que elimina barreiras entre pessoas e máquinas e abre novas portas”. 

Segunda parada: mais dúvidas do que certezas (ou não)

Segundo algumas análises, tais portas se abrirão em breve para o mundo da educação. Em 2017, o Fórum Econômico Mundial divulgou uma análise que aponta que a maior empresa da internet em 2030 será educativa, e que a base de seu negócio será a aplicação da inteligência artificial e o desenvolvimento de chatbots.

Hoje, porém, ainda temos muitas dúvidas: será que os chatbots solucionarão problemas de aprendizagem? Ampliarão a personalização? Farão da aprendizagem algo mais natural? Realmente falarão a língua dos alunos? Trabalharão habilidades?

Antonio Rodríguez de las Heras, professor da Universidade Carlos III de Madri, considera que essas ferramentas serão um elemento que vai intervir e servir de mediador entre o professor e o aluno. “É preciso abrir espaço para elas entre nós. A educação personalizada será o resultado de uma tríade formada pelo aluno, o professor e o bot – com os três aprendendo ao mesmo tempo”, comenta.

Entretanto, elas terão de achar seu espaço e isso não será fácil, diz Alfredo Hernando, especialista em inovação educacional. Para ele, “os chatbots podem ocupar um espaço na correção rápida de respostas ou onde não há necessidade de compreensão semântica avançada”. A psicóloga Natalia Calvo, que pesquisa aprendizagem e neurodidática, concorda. “O desafio será encontrar um espaço adequado. Não acho que consigam dar resposta a todos os conteúdos de todas as disciplinas”. 

Natalia tem sensações contraditórias ao analisar o fenômeno. “É normal uma criança ficar amiga de um robô? Que habilidades socioemocionais estará trabalhando? E quais estará realmente desenvolvendo?”. Mas suas incertezas contrastam com as surpresas positivas que, segundo ela mesma, esses recursos podem trazer para o aprendizado. “O chatbot pode contribuir para canalizar e potencializar a curiosidade de forma que as respostas provoquem novas perguntas, conduzindo a criança atráves de diferentes dimensões do conhecimento”, explica. 

A mesma linha é compartilhada por Marta Bonet. Ela ressalta os efeitos que a chamada “computação cognitiva” pode ter na hora de desenvolver processos de aprendizagem baseados mais na vontade de saber do aluno do que no armazenamento de informações. “Como a máquina decifra a linguagem natural, ela pode digerir conteúdos já existentes de forma rápida – e o aluno, em vez de passar as páginas ou deslizar a tela, pode falar com ela e obter a resposta que procura em sua própria linguagem. A relação com o conhecimento é muito mais natural e próxima”. 

Víctor Sánchez, fundador e CEO da startup Mashme, também considera imprescindível desenvolver essa relação natural entre o aluno e a máquina para que os chatbots tenham sucesso. “À medida que os processadores de reconhecimento da linguagem natural forem melhorando, o nível das perguntas que serão capazes de responder de forma completa e satisfatória aumentará exponencialmente”.

Terceira parada: qual espaço os chatbots ocuparão no mundo educativo?

Se parece inevitável que robôs conversacionais sejam usados em contextos de aprendizagem, que espaço eles ocuparão? Será que substituirão alguém? Oferecerão formas alternativas de aprender? Os especialistas divergem quanto aos caminhos.

Alfredo Hernando ressalta que, apesar do potencial dos chatbots “nos cursos on-line ou semipresenciais, nos quais sua incorporação tenderia a ser maior, até o momento optou-se mais pelo crowdsourced. Isto é, antes de automatizar as respostas e correções, os alunos se ajudam uns aos outros ou o grupo, em conjunto, resolve e soluciona as dúvidas de maneira participativa, mas organizada”.

A professora da Unifesp Paula Carolei acredita que a inteligência artificial não deve ser usada para produzir respostas, e sim para embasar perguntas e gerar provocações. “É uma questão metodológica. Esses programas podem ser de grande ajuda para organizar dados, encontrar padrões, contradições etc. Mas infelizmente há sistemas de tutoria sendo criados para dar respostas muitas vezes redutoras, o que é uma pena diante do potencial da tecnologia”, afirma.

Já para Antonio Rodríguez, da Universidade Carlos III de Madri, é clara a transformação que eles trarão ao sistema. Para o aluno, “um edubot é um assistente educativo pessoal, que estará sempre ao lado do aprendiz. Sua presença será intensa, mesmo que invisível. De acordo com o nível educativo e o propósito, ele pode até ter um corpo, dirigido especialmente à afetividade que todo relacionamento necessita”. Do ponto de vista do professor, será como um “discípulo do mestre, assimilando sua sabedoria e a interpretando para depois responder às demandas do aluno. Assim, o trabalho do professor não fica nem reduzido nem encoberto pela incansável entrega do bot”. 


Os robôs estão entre nós

Rastrear chatbots educacionais hoje é tarefa relativamente fácil, pois a área ainda está evoluindo, especialmente na educação básica. Segundo a designer conversacional Camila Canonici, uma das “experiências pioneiras e revolucionárias” foi o Robô Ed, da Petrobras, que até 2016 trocou 250 milhões de frases com internautas. “A partir de 2004, quando entrou no ar, ele foi aprendendo com as conversas e evoluiu até conseguir dar cerca de 40 mil respostas, indo de petróleo a Machado de Assis”.

Camila cita um projeto do governo do Ceará e outro de Moçambique como exemplos recentes da aplicação dessa tecnologia para fins educacionais. No caso do Ceará, o governo vai testar robôs da empresa Somai em salas de aula a partir de 2019. “A presença física dos robôs gera uma experiência relevante, o que contribui para a memória de longo prazo”. Já em Moçambique, a ambição do robô Dr. Wilson é ajudar a “salvar 20 mil crianças de até 5 anos nos próximos 36 meses”, por meio de conversas com “cidadãos comuns” sobre higiene, uso racional da água e esgoto.

Em São Paulo, a inteligência artificial está presente também como disciplina. No colégio Dante Alighieri, desde o início de 2018, há uma eletiva dedicada ao tema. O professor Rodrigo Assirati Dias, responsável pela cadeira, conta que a iniciativa faz parte da carga horária do novo Ensino Médio e foi um sucesso. “Foram 37 inscritos e 25 selecionados no primeiro semestre. Eles aplicaram conhecimentos de matemática e linguística, refletiram sobre questões éticas e tiveram de produzir um chatbot com um personagem histórico, além de escrever um artigo”, conta. 

“Mas por que incorporar esse assunto ao currículo tão cedo?”, você talvez se pergunte. Rodrigo, que também dá aula no ensino superior, tem a resposta na ponta da língua. “A coordenação do colégio escolheu IA porque ela vai ser parte da vida de todo mundo no futuro. Mas a gente também ouviu os alunos, e eles se interessaram muito pelo tema”, explica.


STRYX, um chatbot que ajuda a estudar

Na noderna, o tema dos bots tem sido objeto de estudo há alguns anos. Em 2019, o trabalho vai dar seu primeiro fruto: o chatbot Stryx chega nas escolas com a missão de ajudar os alunos a estudar. “Detectamos em pesquisa que os alunos não querem mais estudar só com o livro, e que os professores acreditam que o principal desafio da profissão hoje é tornar a matéria mais atrativa e gerar interesse”, diz a coordenadora executiva de conteúdo digital, Ivonete Lucírio.

Em resposta a esses problemas, o núcleo de inovação criou um estudo guiado em forma de diálogos, que incentiva a retomada dos conteúdos e atende o aluno no momento em que ele mais precisa: quando está sozinho, sem o apoio do professor nem dos colegas. “A pesquisa mostrou que, nessa hora, muitos recorrem ao celular, mas têm dificuldade para fazer uso produtivo do dispositivo”, conta Ivonete. “Acreditamos que, com a ajuda da Stryx – uma coruja bem-humorada e amigável, sem ser sabichona –, esse tempo de tela vai ser mais eficaz, e o aluno vai ganhar autonomia”, acrescenta ela.

A proposta não é substituir o professor nem o livro, muito menos esgotar os temas. Stryx é, em essência, um colega virtual. “Ela recupera o principal de cada assunto por meio de uma conversa, em uma linguagem próxima do aluno. Usamos inclusive elementos típicos das trocas de mensagem, como gifs, emoticons e abreviações, mas sem perder em nenhum momento o rigor da informação”, garante a coordenadora.

Para o aluno que tiver dúvida ou quiser se aprofundar, o chatbot sugere links de recursos confiáveis, como videoaulas e aplicativos relacionados a cada matéria. Alinhada com a BNCC, a novidade acompanha a reformulação do projeto Araribá Plus, coleção destinada para o Ensino Fundamental 2, e está disponível nas disciplinas de Português, Matemática, História, Geografia e Ciências.


Natalia Calvo propõe uma perspectiva fascinante em que os bots podem contribuir de forma decisiva para uma nova relação entre aprendizagem e erro. “O fato de uma máquina trabalhar com o erro de forma diferente diminui a pressão sobre o aprendizado, o que contribui para que ele aconteça de forma mais natural, como ocorre em contextos não formais”. Segundo Calvo, “os últimos avanços da neurociência demonstram que o cérebro necessita do erro para progredir. Um chatbot deve guiar e oferecer desafios que abram a mente das crianças e as ajudem a mergulhar em sua própria curiosidade”.

Despertar a curiosidade, o espírito crítico, emocionar-se. Todas essas questões podem se tornar mais fáceis se “o acesso à informação não passar obrigatoriamente pelo professor”, diz Marta Bonet. “Isso fará com que ele possa dedicar mais tempo a uma interação de maior qualidade com os alunos. Só que a melhora na qualidade da interação não acontecerá somente entre aluno e professor, mas também entre aluno e máquina. A interação será mais complexa, mais rica e mais natural”, completa.

Segundo Víctor Sánchez, as coisas poderiam ir muito além. Para ele, essas ferramentas vão desenvolver várias capacidades paulatinamente e acabarão resolvendo desde perguntas frequentes e triviais até dúvidas complexas e transcendentais. “Um chatbot poderá talvez se converter em uma espécie de psicólogo, detectando e tratando problemas como depressão, déficit de atenção ou até o bullying real e digital”. 

Esse potencial ressoa com a designer conversacional Camila Canonici, que desde 2001 acompanha os efeitos que os robôs têm, inclusive no público em idade escolar. “Depois que a Petrobras lançou o Robô Ed, em 2004, ele teve de passar a falar de problemas familiares com as crianças, pois esse tópico surgia direto nas conversas”.

Quarta parada: quando os chatbots serão realidade na educação?

Essa pergunta talvez seja a mais fácil de responder, pois a verdade é que já há chatbots disponíveis para uso educacional, tanto no Brasil quanto no exterior. Víctor Sánchez lembra que “hoje já temos o IBM Watson atuando como um professor assistente em fóruns de universidades americanas”. Na próxima década, segundo ele, poderemos ver “versões avançadas, difíceis de serem diferenciadas de professores reais, especialmente ao conversar sobre materiais e disciplinas específicas”.

Para Agustín Cuenca, fundador e CEO da empresa ASPGems, o fenômeno “acontecerá mais tarde do que acredito (5 ou 10 anos), mas antes do que calculam aqueles que pensam que ele não vai acontecer”. 

Além do quando, Antonio Rodríguez acha que será muito relevante o como. “Desorientação e resistências serão inevitáveis no caminho. Deverá ser superado o preconceito de que isso significa automatizar a educação, de que a inteligência artificial coloca a função do professor em segundo plano, ou de que ela vai trazer um controle excessivo ao acompanhar e avaliar tão de perto a aprendizagem do aluno”.

Na mesma linha, Marta Bonet acredita que essas ferramentas terão espaço desde que o ser humano entenda que máquinas têm a função de melhorar a qualidade de vida e não a de substituir outras coisas. “O ser humano é resistente a mudanças, mas a tecnologia tem colocado muitos paradigmas de pernas para o ar. Por isso, em relação à chegada da inteligência artificial, torna-se cada vez mais urgente trabalhar o espírito crítico dos alunos para que possam entender e gerenciar essa importante mudança”, explica.

O cenário é mesmo inquietante e, por ora, a única certeza talvez seja a de que, com a inteligência artificial, a transformação das formas e das relações será significativa. Por enquanto, vale continuarmos atentos às conversas das crianças com a Siri…

Fernando Herranz  

é responsável pelo Departamento de Inovação da Santillana na Espanha. 

Para saber mais

  • Blog Toyoutome, Cuando chatear signifique aprender… y enseñar: mod.lk/1wpfj 
  • Robô Ed Petrobrás: www.ed.conpet.gov.br/br 
  • Projeto Araribá Plus / Stryx: mod.lk/V44F2 
  • Relatório IBM – Possibilidades da inteligência artificial na educação: mod.lk/pesqibm
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