fbpx

Formação de professores frente a um currículo em movimento

Como garantir que os professores estejam inseridos nas constantes transformações dos currículos escolares em um contexto tão complexo quanto o brasileiro?

Por Miguel Thompson

A educação brasileira está prestes a enfrentar um de seus maiores desafios. Estimativas apontam que, até 2023, quase metade dos professores estarão em idade de se aposentar. Isso corresponde a cerca de 1,2 milhões de profissionais com potencial de sair da carreira docente. Isto somado à grave crise de qualidade da educação brasileira, traz a pergunta: quem assumirá as salas de aula? A despeito da complexa situação, seria importante pensarmos a aposentadoria dos professores como uma oportunidade para aproveitar as vivências desses profissionais sêniores para o estímulo, preparação e formação de novos docentes. Dessa forma, a principal crise, a da qualidade em educação, poderia ser estrategicamente equacionada, formando profissionais melhor preparados para os novos tempos, sem perder de vista o imenso capital intelectual e experiencial que os professores em processo de aposentadoria podem compartilhar. Este modelo de transição já tem sido adotado em países com ótimo desempenho educacional e tem garantido a qualidade a longo prazo.

Um dos grandes problemas no processo de formação de professores está na incapacidade de atrair os melhores alunos para a profissão. Lembremos que antes dos anos 60, as famílias de elite tinham orgulho de ter entre seus filhos, médicos, advogados, padres e professores. No entanto, nos últimos 50 anos, houve uma progressiva desvalorização da profissão docente. O processo de universalização da educação pública passou a demandar mais profissionais do que o sistema educativo poderia formar com a qualidade desejada e aconteceu uma rápida depreciação salarial dos professores.

Uma profunda preocupação com a formação docente tem sido pauta entre os especialistas. O Plano Nacional de Educação (PNE), em vigor desde 2014, apresenta propostas de melhoria da formação docente, que envolvem temas importantes como a organização curricular, o planejamento letivo, a necessidade de renovação continuada (pesquisa e programas de pós-graduação), a remuneração e os modelos de planos de carreira. A legislação vigente conta com uma clara orientação de melhoria salarial para os próximos anos, mas, fato é que ainda recebemos menos que profissionais de outros setores com a mesma qualificação. Ao analisar os números da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), divulgada pelo IBGE, percebemos que os salários de professores estão crescendo, em média, acima da inflação, e num ritmo superior ao verificado entre os demais trabalhadores com diploma universitário. Isso significa que a distância entre os profissionais que dão aulas em escolas está diminuindo em relação a outras carreiras com formação universitária. Mas, infelizmente, o ritmo de melhoria dos salários ainda é insuficiente para cumprir a meta do PNE.

Formação inicial

Além de tentar atrair os melhores estudantes para a carreira docente, o Conselho Nacional de Educação, em 2015, baixou uma resolução (Resolução 2/2015 – CNE) com orientações vistas como essenciais para a formação de um professor preparado para as transformações do mundo. Assim, o CNE e as faculdades firmaram um compromisso com a qualidade docente desde os primeiros passos acadêmicos. Vamos debater alguns desses pontos e discutir como pode ser pensada a formação dos professores para o século XXI:

1

Sólida formação teórica e interdisciplinar

Uma sólida formação teórica é fundamental para se exercer uma docência de qualidade que atenda as demandas atuais. Sem a capacidade de observar o mundo pelo prisma dos modelos conceituais construídos ao longo da história da humanidade, é quase impossível ser um bom docente. Um professor alfabetizador deve conhecer as principais teorias de alfabetização e letramento para fazer suas escolhas teóricas e metodológicas de acordo com as necessidades dos estudantes e os contextos de sala de aula. O mesmo se aplica para as outras especializações e disciplinas. O profissional contemporâneo deve ter domínio sobre o conhecimento específico que irá ministrar, mas é importante ressaltar que isso não é suficiente para dar boas aulas e construir o aprendizado junto aos alunos. Não se pretende um biólogo ou um físico em sala de aula, mas professores de Biologia e Física que saibam fazer a transposição do conhecimento específico para que ele se torne significativo para todos os estudantes. Aqui, o conhecimento didático e o desenvolvimento dos alunos agrega-se à formação em disciplinas específicas, produzindo uma prática diferente daquela existente em laboratórios de pesquisa ou indústrias, construindo assim a especificidade da ação docente.

Outro ponto a destacar é a necessidade de o professor saber dialogar com distintos campos do saber para poder correlacionar conceitos específicos a outras áreas do conhecimento. Isso é necessário porque o entendimento e a resolução dos problemas reais é muito mais complexa do que a forma como são organizadas as disciplinas escolares. Eventos econômicos (crise econômica de 2008), questões ambientais (mudanças climáticas) ou crises sociais (como os fenômenos migratórios na Europa ou as manifestações sociais brasileiras de junho de 2013) só podem ser interpretadas à luz de diversos conhecimentos disciplinares. Pensando nisso, formaremos jovens mais criativos e inovadores, capazes de usar um repertório de diferentes áreas na resolução de problemas.

Em geral, formar um professor com excelente conhecimento específico e amplo espectro de movimentação em diferentes áreas é vital para a formação de jovens inovadores e preparados para um mundo em constante mudança.

Unidade teoria-prática

Transpor um conteúdo específico para a sala de aula é traduzir conceitos em uma linguagem acessível e adequada para a faixa etária e sociocultural daquele contexto escolar. A capacidade de usar analogias, metáforas e exemplos do universo do estudante é fundamental para trazer significado ao que se ensina. Sem essa interação não se constrói conhecimento significativo. Como é possível uma criança lembrar mais de 100 nomes diferentes de Pokémons e não lembrar a capital de um país ou o nome do rio que corre na sua cidade? A educação se dá, na verdade, em um processo de interação entre os conhecimentos formais da escola e o cotidiano do aluno, repleto de ideias espontâneas baseadas em suas experiências. Quanto mais próximo um do outro, mais fácil transformarmos o enorme potencial da mente dos estudantes em uma realidade geradora de novos conhecimentos.

É nessa constante interação entre a teoria e a prática, ou seja, entre o que deve ser ensinado de acordo com os currículos oficiais e a realidade vivida pelo estudante, que se constrói o processo educativo. O professor deve ser um investigador, imaginando o currículo a ser ensinado como uma hipótese a ser testada. Os objetivos instrucionais devem aparecer como um planejamento de um experimento, que ocorrerá em sala de aula ou em toda interação educativa. A partir das respostas dos alunos, novos planos de aula são elaborados, em um contínuo investigativo da relação teoria-prática, visando o desenvolvimento máximo daqueles alunos, naquela situação e naquele contexto.

Em um mundo de transformações, a teoria deve servir como um apoio importante, mas não pode ser tratada como um catecismo imutável. É na interação com a sala de aula, no registro do professor e na reflexão sobre essa prática que se constrói um projeto educativo que leva em consideração as mudanças no espaço e no tempo, sempre com foco nas necessidades reais dos estudantes. De acordo com a resolução 2/2015 do CNE, isso se dá pensando “a docência como ação educativa e como processo pedagógico intencional e metódico, envolvendo conhecimentos específicos, interdisciplinares e pedagógicos, conceitos, princípios e objetivos da formação que se desenvolvem entre conhecimentos científicos e culturais, nos valores éticos, políticos e estéticos inerentes ao ensinar e aprender, na socialização e construção de conhecimentos, no diálogo constante entre diferentes visões de mundo.”

Para que a interação entre teoria e prática funcione, não se pode mais evitar as novas tecnologias. O uso das mídias sociais é fundamental para o professor conectar os estudantes em rede, incentivar o trabalho colaborativo e de cocriação, estimular a comunicação a distância e realizar pesquisas individuais na internet, induzindo também um processo customizado de formação. É por meio das ações sugeridas, associadas ao pensamento crítico, que aproximaremos o docente das novas tecnologias, não oferecendo dispositivos eletrônicos de maneira descontextualizada e sem projetos educacionais robustos. Neste sentido, a gravação de aulas com celulares, por exemplo, permite que o professor utilize as novas tecnologias (TICs), analise individualmente e receba feedbacks que seguramente o ajudarão no aperfeiçoamento do processo educativo e no aprimoramento da prática docente.

Por fim, a aproximação dos centros formadores de professores com as escolas deve ampliar a presença do futuro professor na sala de aula, transformando o estágio em uma ferramenta real de formação, reflexão e aquisição de elementos da prática docente.

Trabalho coletivo e interdisciplinar

Se antigamente planejar era um trabalho individual, hoje é irreal imaginar um projeto educativo cujos planos didáticos sejam elaborados por um professor solitário, fechado em sala de aula, em uma interação exclusiva com sua classe. Preparar o planejamento do curso coletivamente, atuar em grupo e refletir com seus pares as melhores estratégias devem ser práticas da escola contemporânea. Comunicar essa prática e incluir os estudantes nesse processo é fundamental para formar os jovens do século XXI. É por homologia de processos, isto é, reproduzindo o que viveu na escola, que se desenvolve o conhecimento e se estimula as práticas dos futuros cidadãos. Não há mais espaço para os profissionais que não sabem trabalhar em grupo. Do plano à ação, da avaliação à gestão da sala de aula, é essencial que se crie o hábito de trabalhar aos pares ou em grupos.

Assistir a aula do colega para posterior feedback é uma ferramentas eficiente de melhoria da ação docente. O trabalho coletivo deve, portanto, ser tratado como um valor a ser compartilhado com os estudantes. Uma das características dos novos tempos é a colaboração em massa e os jovens produzem bem desta maneira. Os cientistas trabalham assim há séculos, publicando suas pesquisas e recebendo sugestões de seus colegas. Projetos recentes como o Genoma Humano, que sequenciou todo DNA de nossa espécie, recebeu contribuições coletivas de cientistas de todo o mundo. As empresas vêm usando esse potencial de inteligência coletiva para produzir novos produtos e serviços, como os aficionados por LEGO, que geram novos produtos para a empresa, ou mesmo grupos de consumidores de carros da BMW, que participam coletivamente da discussão e elaboração de novos projetos. Os agrupamentos de jovens, por sua vez, já produzem fenômenos coletivos, como festivais de cultura POP (Comic Con, evento de quadrinhos e séries de TV, por exemplo) ou disputas em estádio de finais de campeonatos de games (League of Legends).

No processo de construção coletiva do projeto educativo, os próprios estudantes são fonte de grande valia. Pela primeira vez na história, os jovens acumulam um determinado tipo de conhecimento superior ao acumulado do mundo adulto. É o caso dos usos das novas tecnologias ou conhecimentos gerados pela cultura digital, como os canais de youtubers. O educador contemporâneo deve usar esses valores para seu aprendizado e para desafiar e se aproximar de seus alunos.
Interagir com diferentes pontos de vista pode evitar erros e preconceitos inerentes a nossa formação. É no diálogo com o grupo que surgem as melhores aulas. Reconhecer que sabemos pouco sobre algo ao dialogarmos com outros especialistas, além de nos trazer novos conhecimentos, nos faz mais humilde frente aos alunos, que terão contato com toda a gama de conhecimento curricular daquela série. Se nem nós sabemos a maioria dos conteúdos, por que obrigamos os jovens saberem tudo nas avaliações? O diálogo interdisciplinar ressignifica nossos conteúdos, aproxima diferentes conceitos para a resolução de problemas e demonstra aos alunos que, para interpretar o mundo, são necessários diversos tipos de conhecimentos.

Compromisso social e valorização do educador

Já falamos aqui sobre contextualização e complexidade. Nada nos parece mais importante que estabelecer conexão entre o conhecimento escolar e a sociedade, visando a mudança da realidade. Em uma nação com tantos problemas sociais como o Brasil, é muito importante o compromisso do professor com a transformação. Seja em relação às melhorias das condições de vida, seja com uma maior atuação na comunidade e/ou no ambiente. Em um mundo globalizado e com 7 bilhões de pessoas não é mais possível imaginar apenas o desenvolvimento individual dos estudantes. É preciso planejar cursos que os preparem para a série de problemas urbanos, sociais e ambientais que eles herdarão. Assim, engajar o professor nos problemas de seu tempo é engajar os estudantes no seu próprio projeto de vida.

Usar exemplos do entorno, da cultura local ou fenômenos mundiais emergentes para estimular a reflexão crítica com modelos de conhecimento escolar e de experiências dos estudantes aproxima o que se aprende na escola com a realidade, permitindo o uso dos conteúdos escolares como ferramenta de entendimento e intervenção no mundo.

É também a partir dessa conexão com os contextos reais que as famílias se aproximarão da escola. É no debate sobre temas atuais e relevantes da vida familiar, que os pais entenderão que a escola não existe apenas para formar um jovem para um futuro abstrato, mas está também a serviço da contemporaneidade. É nessa entrada do conhecimento escolar no cotidiano das casas que ocorrerá a valorização do professor e a adequação do conhecimento às emergências do mundo atual.

Formação continuada e pesquisa

Reiteramos que a única certeza que temos é a mudança. Nos novos cenários muitas funções sociais desaparecerão, como ocorreu com o datilógrafo, por exemplo. Mas, em contrapartida, novas profissões surgirão sem que nem imaginemos. Quem diria há 10 anos que ser blogueiro, youtuber ou gamer seriam profissões nos dias de hoje?

Dessa forma, conhecimentos e práticas de hoje podem ser obsoletos em pouco tempo. Não se trata de ampliar nossa ansiedade em busca de cursos de uma forma que prejudique nossa qualidade de vida, mas devemos levar em consideração que precisaremos estudar ao longo de toda nossa vida. Seja para atualizar metodologias, seja para prepararmos nossos alunos de maneira adequada e significativa.

Acompanhar as mudanças coletivas, sociais, acadêmicas e tecnológicas será cada vez mais um diferencial na profissão e também uma obrigação. De agora em diante, cada vez mais grupos de interesse criarão conteúdo nas mídias sociais. Questões socioambientais, éticas, estéticas e relativas à diversidade étnico-racial, de gênero, sexual, religiosa, de faixa geracional e sociocultural circularão em grupos organizados e deverão ser objeto de apreciação da escola, do professor e do plano de aula. Aproximar temas emergentes dos conceitos formais escolares será fundamental para contextualizar e trazer significado ao ambiente escolar, exigindo constante estudo, investigação e pesquisa do professor.

Autoconhecimento e formação integral

Para terminar, é imprescindível lembrar que o profissional contemporâneo deve desenvolver um compromisso com seu autoconhecimento e sua formação integral. Não somos apenas organismos cognitivos, e os novos tempos exigem uma integração maior entre mente, corpo, sociedade e ambiente. Vivemos como se vivêssemos em um mundo fragmentado, onde as pessoas, os organismos e os sistemas operassem de forma independente. Mas, na realidade, nossas relações são interdependentes e sistêmicas, portanto complexas. Saber o que não sabemos, buscar nos outros conhecimentos complementares, entender o que nos afeta coletivamente, o que são e como as habilidades socioemocionais (tão exigidas nos dias de hoje) devem ser levadas em consideração e o que devemos desenvolver e estimular nos estudantes, serão questões ainda mais relevantes para o desenvolvimento do professor como indivíduo e como profissional.

Miguel Thompson
É Doutor em Oceanografia pela USP e atua como Diretor da Fundação Santillana*. É autor de livros didáticos pela Editora Moderna e foi professor do ensino básico por 25 anos.


Compartilhe!
Site Protection is enabled by using WP Site Protector from Exattosoft.com