De olho no exemplo
Você pratica o hábito de ler?
Texto: Moderna
O sinal do intervalo toca. É hora de um breve descanso antes da próxima aula. Você sente a sensação de liberdade dos próximos 20 minutos. Está caminhando rumo à sala dos professores, livro em punho, pensando no capítulo que deixou pela metade. Perto do seu destino, um dos alunos aparece no corredor para tirar uma dúvida e percebe a obra em suas mãos. Curioso, ele admira a capa e o tamanho do livro e pergunta como você consegue ler um exemplar tão grande. Você sorri e começa, sem perceber, a contar a sinopse da história e o quanto esse livro tem conquistado a sua atenção.
Talvez essa situação não seja tão corriqueira. Não pela falta de vontade, mas pela correria entre planejamentos, aulas e correções de prova. Mas, agora, pense: quantas vezes você já foi flagrado por seus alunos com uma literatura? Aquela que guardamos em nossas bolsas para ler a caminho do trabalho? Pense em quantas vezes, entre uma fala ou outra, você já mencionou o nome daquele livro que está em casa esperando você?
A leitura é um hábito e o exemplo é uma das maiores formas de se adquiri-lo. Formar bons leitores começa por ser um leitor dedicado. Por mostrar interesse e prazer no mundo da leitura. Não se trata da quantidade de livros, mas do exemplo pela atitude de ler. Quando algo faz muito bem para alguém, obviamente, vamos querer que faça bem para nós. Queremos vivenciar aquela experiência e compartilhá-la. Sob essa perspectiva, convidamos cinco dos nossos autores de literatura para nos contar experiências próprias com a vida literária, sobre a importância de o professor ser um leitor contumaz, e como motivar uma turma de alunos a ir além da leitura do bimestre. Com vocês, Eva Furnari, Ilan Brenman, Pedro Bandeira, Sônia Barros e Walcyr Carrasco.
Alimentando a alma
Pedro Bandeira
Em minhas palestras, acostumado que estou com a maciça presença feminina em minha plateia, ao aconselhar que além do esforço que fazemos para levar nossos alunos bem além da alfabetização, rumo à compreensão do que leem, na direção do pleno letramento, procuro incentivá-las a tornarem-se, elas próprias, boas leitoras. Em um desses encontros, escorreguei no costume e disse-lhes:
— A leitura de um bom romance é companhia, entretenimento e diversão. Quando estiverem sem ter o que fazer numa sala de recepção do dentista ou do ginecologista, nada como ter levado na bolsa um romance que estejam lendo, para preencher a monotonia da espera.
No final da palestra, de caneta em riste, pronto para os autógrafos e as selfies, deparo-me com um sujeito grande e barbado que me encara com uma expressão de galhofa:
— Obrigado por me mandar ao ginecologista!
Pois é! Talvez por fazer as palestras sem óculos, acabo por não perceber que, entre as centenas de mulheres, há alguns barbados…
Esse é o desafio: um professor de natação tem obrigatoriamente de saber nadar, um professor de piano tem de ser, pelo menos, um pianista razoável. O mesmo acontece conosco. Temos de gostar de ler, de ler com a maior frequência que pudermos.
Todos sabemos que o tempo de uma professora (e também de um professor barbado…) é bastante limitado. Muitas vezes trabalhamos em dois períodos, nosso lazer é preenchido pela preparação de aulas, pela correção de provas, pelo cuidado com nossa casa e com nossas famílias. Não temos tempo para ler!
Esse é um dos nossos maiores problemas. No entanto, como a comida é o alimento de nosso corpo físico, a leitura e a arte são os alimentos de nosso corpo emocional. Nossos problemas pesam menos se, nos pequenos intervalos da vida, preenchemo-los vivenciando os problemas de personagens, em vez de remoer os nossos. A arte faz com que resolvamos muitos problemas de nosso espírito sem ter de sofrer seus pesos na própria pele. Não precisamos que nosso cônjuge nos traia para que saibamos o que é o ciúme, para isso podemos ter lido Dom Casmurro, de Machado de Assis, ou assistido a Otelo, de Shakespeare. Não precisamos matar duas velhinhas a machadadas para saber o que é sermos corroídos pelo remorso, pois já conhecemos Crime e castigo, de Fiódor Dostoiévski.
É isso, minhas queridas professoras, meus queridos professores: sem a força emocional que a literatura nos traz, só nos resta engordarmos com as pizzas de um espírito esvaziado de emoções.
Despertando professores leitores
Sônia Barros
O encantamento que a leitura me proporcionou desde a infância fez com que eu desejasse ser escritora. Antes disso, escolhi ser professora, fazer-me ponte entre o mundo dos livros e meus alunos para levá-los a esse mesmo encantamento. Hoje, não mais leciono, mas visito escolas para falar sobre “o poder transformador da leitura”.
O processo de formação do leitor é gradativo e depende de mediador, o qual deve ser, obviamente, bom leitor! Em mais de 20 anos visitando escolas, conheci ótimos mediadores de leitura; no entanto, muitos educadores sentem-se inseguros para exercer a função, pois eles mesmos não se dedicam à leitura literária: em alguns casos, porque não tiveram a formação adequada.
Nas escolas onde encontrei professores leitores, percebi envolvimento da equipe pedagógica na realização de projetos literários. O papel do coordenador mostrou-se fundamental para estimular os professores e, juntos, buscarem práticas de leitura. A escola proporcionou condições à equipe, pois, assim como os alunos necessitam de tempo e espaço para desfrutarem de diversos tipos de leitura, é imprescindível que os professores tenham tempo e espaço para aperfeiçoamento. Práticas de leitura devem ser permanentes!
Práticas realizadas na escola: acesso a referências teóricas, pesquisadas pela coordenação e oferecidas aos professores para estudo; momento destinado à leitura, para que o educador mergulhe no texto que irá oferecer aos alunos; partilha (entre professores) das experiências que uma obra proporcionou: é preciso falar sobre o que se está lendo e ouvir o outro; leitura em voz alta, compartilhada, de diversos gêneros literários; organização de saraus envolvendo a comunidade escolar.
Práticas realizadas fora da escola
Encontros em bibliotecas e centros culturais para trocas de experiências literárias; participação em seminários e oficinas sobre mediação de leitura; cursos de especialização.
Práticas no mundo digital
Participação em clubes de leitores nas redes sociais, que abrem espaços para resenhas e debates; acesso a sites literários que, além das indicações de leitura, organizam fóruns e encontros virtuais.
Se, por um lado, há dificuldades no processo de formação de professores leitores, por outro as possibilidades são muitas. O mais importante é o “querer tornar-se leitor” para, depois, formar leitores sensíveis e críticos, dando a eles a possibilidade de enriquecimento linguístico e, sobretudo, existencial.
Como acalmar um formigueiro?
Eva Furnari
Dizem que as crianças andam agitadas, tão agitadas que parece que alguém as ligou no 220 W. Já ouvi professores comentando que os alunos não param quietos, andam dispersos, têm dificuldade de concentração e foco, situação bem diferente dos tempos antigos quando a palmatória mantinha o silêncio, a ordem e a disciplina. Graças a Deus, hoje, não temos mais palmatórias e os educadores se preocupam, de fato, com o bem-estar e a boa formação dos jovens e das crianças.
Mas vamos voltar aos 220 w. Vamos voltar às crianças que parecem ter não apenas formigas pelo corpo, mas também todo um formigueiro acelerando a mente. De onde vem tanta agitação? Será que ela é natural? É própria da infância? Podemos culpar o excesso de informação? A vida moderna?
O fato é que, entendendo ou não as razões desses excessos, os professores têm de lidar com isso. E lidam, não apenas com uma criança, mas com toda uma classe agitada. Como esses heróis anônimos da sala de aula fazem isso no dia a dia? Eu não sei, mas imagino (tenho quase certeza) que existe um momento especial em que capturam o foco da meninada. E que hora é essa? É a hora da história.
Quem não gosta de ouvir uma boa história? Uma narrativa inteligente, com poesia, com humor, pode encantar e ganhar a atenção dos alunos. Ao emocionar, ao falar dos conflitos, dos sofrimentos, das conquistas, seja de maneira realista ou simbólica, as histórias podem trazer a tão desejada atenção e o tão importante interesse dos alunos. Os jovens e as crianças querem entender o mundo, querem se inteirar da complexidade da sociedade e das relações humanas. A boa literatura traz isso para os leitores, a boa literatura é capaz de pescar no mundo alguns conteúdos aparentemente caóticos e dar sentido a eles.
O conto de Joãzinho e Maria trata das seduções perigosas, da bruxa malvada que atrai os inocentes com uma casinha de doces. O conto chinês o “Pote vazio” nos emociona ao nos convencer da importância da honestidade. A história do “Lolo Barnabé” trata do nosso incessante desejo de consumo tão presente e problemático na nossa sociedade.
É uma sorte as crianças de hoje contarem com ajuda luxuosa da literatura e com o talento dos professores que não só contam histórias, mas as desdobram em artes, desenhos, cantorias, danças, teatros. Os livros, assim bem tratados, são como sementes, eles germinam, crescem, dão flores e frutos.
E eu, como autora, só tenho a agradecer aos professores por me deixar participar (mesmo que um pouquinho) dessa grande missão que é educar.
Sonhos reais
Walcyr Carrasco
Olho para trás e me vejo adolescente, magro… Ah, como eu era magrinho! Magrinho, cabeludo e com óculos maiores que meu rosto. Hoje, na luta para perder a barriga, muito menos cabelos e óculos coloridos, eu me confronto comigo mesmo e penso: quais foram meus passos? Como caminhei, o que deixei, o que conquistei? Eu daria meu aval ao garoto magrinho? Apostaria? Sem falsa modéstia, sei que sou um escritor reconhecido. Quando eu era jovenzinho já queria escrever. Perdi muitas festas, amizades, porque passava o fim de semana inventando histórias, na minha querida máquina de escrever. (Sim, sou um espécime pré-computador.) Escrevia sem um objetivo definido, para depois, quem sabe, apresentar um livro a uma editora. Uma peça para atores que se interessassem em colocá-la no palco. Guardei esses textos, imaginem! Recentemente, reli alguns. Horríveis.
Exatamente. Pavorosos. Li e pensei: como escrevi isso? Eu que me achava talentoso, queria ser um grande escritor? Não, não sou tão severo comigo mesmo. Realista, sim. Eu devia ter percebido, pelos sinais alheios. Lembro de um amigo, também escritor, que certa vez trocou seus contos comigo. Eu li os dele, ele os meus. Depois comemos sanduíches no bar. Passei horas falando de seus textos. O rapaz não abriu a boca sobre os meus. Não soltou uma única palavra. Foi horrível. Achei que era egocentrismo, que ele só queria falar de si próprio. Hoje sei… era falta de coragem de falar o que realmente achava. Na época, me ofendi. Hoje não sei o que foi feito dele. Escrevia bem, mas não publicou um livro sequer, sumiu.
O rapazinho magricela não era desprovido de talento, mas tinha muito a aprender. Racionalmente, eu sabia o que desejava, só não sabia muito como chegar lá. Mas, me comparando com esse amigo, havia uma clara diferença. Eu ouvia. Sempre digo que há dois tipos de pessoa: a extremamente talentosa, mas orgulhosa. Essa não ouve uma crítica, e, por melhor que seja, não evolui, seja qual for o trabalho. As pessoas com menos talento, mas humildes, tendem a dar mais certo. Receberão as lições da vida e aprenderão com elas. Crescem. Eu sou do segundo tipo. Até hoje. Ouço o que me dizem. Aprendo.
Eu tinha meus sonhos. Acredito que os sonhos são o melhor projeto de vida que alguém pode ter. São vibrantes. Ser escritor não é uma carreira fácil, objetiva. A gente conta inclusive com a sorte. Mas como sempre digo, é preciso ter abertura de espírito para deixar a sorte acontecer. Sempre que penso em mim, de lá até aqui, penso também que se não fui o de mais talento, fui o mais teimoso. Muitas vezes me pedem conselhos, perguntam como seguir um caminho. Eu digo: teime. É preciso teimar nos sonhos, acreditar profundamente neles. Isso, sim, ajuda a encontrar rumos. Ter tornado meus sonhos reais é o melhor presente que dei a mim mesmo nesta vida.
Eu sabia que ele ia longe
Ilan Brenman
era o primeiro dia de aula, antiga sétima série, adolescentes de 12, 13 anos. A aula começou com a famosa chamada. Confesso que detestava aquela encadernação azul com os nomes dos alunos e um quadradinho microscópico para fazer um pontinho de tamanho quântico para os presentes na sala. Naquele primeiro contato, eu já intuía como seria a dinâmica da sala durante o ano todo, numa simples chamada os alunos já mostravam um pouco de suas personalidades.
Nessa sala em particular havia um adolescente que me chamou muita atenção, um garoto de 16 anos, quietão, que havia repetido três vezes de ano na sua jornada escolar. O grupo olhava com certo desdém o tal repetente, ele era grandão, mas ao mesmo tempo, na visão dos outros, pequeno no pensar. Com o desenrolar do ano, fui ficando angustiado com a postura dos alunos em relação a esse menino, eles o desprezavam, tiravam sarro, eu não sei como ele não reagiu violentamente a esses ataques psicológicos, ele era enorme! Talvez a autoestima estivesse tão baixa que nem reação ele conseguia mais ter.
Comecei a investigar a vida desse jovem e descobri com a coordenação da escola uma história familiar complicadíssima. Isso não me sossegou. Queria tentar mudar o olhar da turma em relação ao rapaz. Na sala de professores eu buscava mais informações e, certa vez, uma professora me disse:
— Não perca seu tempo com ele, ele não tem jeito.
Aquilo me enfureceu.
— Como assim não tem jeito? – respondi.
A professora era daquelas que só falavam bem dos alunos que tinham facilidade na sua matéria e falava mal dos outros. Ela ajudava os que não precisavam de ajuda e já sabiam a matéria, e, por outro lado, afundava aqueles que mais necessitavam dela. Respirei fundo, olhei para a professora e disse:
— Você deveria estender a mão para aqueles que mais necessitam de você, os outros se viram sozinhos.
Ela começou a retorcer o rosto, pensei que explodiria, mas, antes disso, peguei minha mochila e saí rapidinho da sala.
No dia seguinte, um fiapo de ideia apareceu, chamei o jovem depois que a minha aula acabou e perguntei na lata:
— O que você gosta de fazer além de estudar?
— Estudar eu não gosto muito, mas toco guitarra. — respondeu rindo.
— Você toca guitarra? Desde quando?
Ele me contou que tocava sozinho há muito tempo. Eu tomei coragem e perguntei:
— Na minha próxima aula você, por favor, poderia trazer sua guitarra?
Os olhos dele brilharam.
— Com amplificador e tudo, professor? — me perguntou.
Eu já estava imaginando o Jimmy Hendrix queimando a guitarra em Woodstock, mas assumi o risco e confirmei:
— Com amplificador e tudo!
Quando o jovem abriu a maleta da guitarra e plugou-a no amplificador, os alunos ficaram boquiabertos, ninguém sabia do talento do colega. Ele deu um show! A turma ficou maravilhada, eu também. Muitos alunos de outras turmas, professores, coordenadores se aproximaram da minha sala para ver o que estava acontecendo.
O olhar da turma para esse jovem mudou radicalmente após esse pequeno show de música. Todos têm um talento, precisamos descobri-lo! A dificuldade do jovem nos estudos formais era real e necessitava de acompanhamento, mas ao descobrir o sentido para sua vida, a música, ele poderia entrar numa banda de rock, ir no Faustão, e a professora que falou mal dele aparecer na TV, dizendo:
— Eu sabia que ele ia longe…