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Alfabetização como Produção e Negociação de Sentido

Para superar a guerra dos métodos, mais importante do que perguntar como ensinar é buscar compreender como a criança aprende.

Texto: Paulo de Camargo

Entre tantos desafios a se superar na educação brasileira, um dos mais importantes e urgentes é o do letramento e da alfabetização de crianças, jovens e adultos. A escola brasileira não vem se mostrando capaz de garantir esse direito aos seus cidadãos. Além de não se dar a prioridade que o tema merece nas políticas públicas, a alfabetização acabou por se tornar, também, um palco de disputas, gerando o que se convencionou chamar de “a guerra dos métodos”.

A premissa dessa discussão, turbinada pelos matizes políticos, é a de que a solução passaria pela escolha do melhor método, opondo defensores de práticas que focam o estabelecimento de relações entre letras e sons, priorizando a decodificação, e os que buscam uma visão mais ampla, em que a criança progressivamente constrói e se apropria dos sentidos e dos significados da leitura e da escrita, dentro contextos sociais de uso da língua.

Para o pesquisador Gilcinei Carvalho, atual diretor do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita da Universidade Federal de Minas Gerais (Ceale), é preciso mudar o eixo dessa discussão. Parafraseando a reconhecida alfabetizadora Magda Soares, fundadora do Ceale, Gilcinei explica que a pergunta de quem acredita na definição crucial de um método é: o que e como se deve ensinar? Mas a pergunta a ser feita deveria ser outra: como a criança aprende?

Nessa concepção, a alfabetização passa por um movimento contínuo de produção e negociação de sentidos em diversos níveis. Explicando essa percepção, Gilcinei Carvalho concedeu à revista Educatrix a entrevista a seguir e anuncia que, a partir de 2025, o Ceale, em decisão aprovada pela UFMG, passa a ser conhecido como Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita Magda Soares, valorizando a inspiração intelectual dessa grande alfabetizadora.

Educatrix: No Brasil, quando se discute a alfabetização, muitas vezes se olha para os resultados de avaliações e para as políticas educacionais. No seu entendimento, por que é importante discutir sobre o tema da alfabetização?
Gilcinei Carvalho: Podemos discutir as concepções de alfabetização a partir do tema das avaliações, embora não seja necessariamente o ponto de partida mais importante. Quando se fala em métricas de avaliação, estamos falando de critérios — e de critérios que são, obviamente, modificados ao longo da história, pois têm a ver com expectativas sociais de desempenho. Basta lembrar que, alguns anos atrás, a escrita do próprio nome e o reconhecimento de algumas palavras já eram considerados elementos suficientes para se considerar alguém alfabetizado. Contemporaneamente, esse parâmetro não é considerado suficiente, pois as expectativas dos usos sociais da escrita vão sendo alteradas. E não se trata de serem melhores ou piores, pois tem a ver com o contexto histórico que projeta funções para a escrita. Quando pensamos a alfabetização hoje, é claro que as métricas de avaliação trazem um retrato. Isso é importante, mas é fundamental, também, que se discuta quais foram os instrumentos que levaram a esse resultado e sob quais expectativas foram organizados.

Educatrix: E hoje, quais expectativas são levadas em conta?
Gilcinei: Hoje, considera-se oficialmente alfabetizados aqueles que sabem ler e escrever pequenos textos. Então, podemos começar a pensar: o que significa esse pequeno? O que é um texto? Ou seja, o resultado buscado não está isento de uma discussão sobre os critérios e os instrumentos, e principalmente em relação às expectativas aos quais se referem. Essas expectativas são validadas não só pela escola, mas principalmente por demandas sociais, em termos de qual é o envolvimento desejável das pessoas na chamada cultura letrada – e estamos falando aí do mundo do trabalho, do lazer, da participação política. Por isso, não se trata apenas do pragmatismo dos pequenos textos, mas devemos lembrar que esses textos se referem a ações que fazem parte de nossas atividades humanas. Em síntese, como resposta à sua pergunta, é claro que os números indicam um cenário, e não podemos ficar alheios a eles, mas temos de entender que essas métricas não vêm do nada, obviamente, e são produto de algum critério representativo de um momento histórico.

Educatrix: Então a importância da alfabetização tem uma dimensão maior do que a compreensão do texto proposto no instrumento?
Gilcinei: Para além de ficarmos avaliando e medindo, há uma dimensão política clara e reconhecida, que remete a uma escolarização cujo objetivo básico é assegurar direitos, inclusive o direito do aluno de aprender a ler, a escrever, a contar… Quando os resultados encaminham para um cenário de fracasso, isso provoca a reflexão. Afinal de contas, o que essa instituição, que busca inserir as pessoas nessa cultura escrita e a promover práticas de leitura escrita, está fazendo? O questionamento ganha força especialmente quando pensamos nas crianças e nos adolescentes em processo de exclusão: os números do fracasso atingem muito mais as classes populares do que a classe média ou a classe alta. Voltando ao tema das expectativas: nas classes médias e nas altas, dificilmente se pensa em alunos não alfabetizados. Isso está fora do horizonte. Ao contrário, aceitamos como se fosse natural que as classes populares estejam fadadas a esse fracasso.

Educatrix: Nesse sentido, há uma dimensão política em toda a política educacional e de alfabetização, não é?
Gilcinei: Uma questão política extremamente séria, porque podemos interpretar como o que é: um processo de exclusão. Se dentro da própria escola a leitura e a escrita envolvem habilidades consideradas básicas para um certo percurso de aprendizagem, que dirá também para outras esferas, para além da escola? Assim, discutir os números de um Censo ou concepção de alfabetização passará sempre por pensar: quais são essas expectativas? O que temos promovido para atingir essas expectativas? Trata-se, especialmente no campo da educação pública, de pensar a alfabetização como elemento de direito. Quer dizer, o direito a aprender a ler e a escrever como prerrogativa importante da própria participação social manifestada, por exemplo, nos percursos escolares que não podem ser interrompidos.

”A pergunta certa a se fazer é:
como a criança aprende? Aí, sim, se pensamos em como a criança aprende, o aprendizado passa a ser também condicionado pela dimensão cognitiva e pelos contextos sócio-históricos em que essa criança está envolvida.”

Educatrix: O tema do direito também está ligado a uma determinada concepção do que é a infância e de como se aprende nessa etapa da vida, não?
Gilcinei: Esse ponto tem um pano de fundo bastante importante: o de entender que estamos falando de um processo de ensino-aprendizagem, e aqui devemos envolver, também, os professores, que estão em um contexto escolar com intencionalidades pedagógicas. Não existe um controle absoluto de quais são exatamente os momentos em que aprendemos. Estarmos vivos é um processo de aprendizagem, principalmente pelas interações sociais que temos. Mas, fica claro, quando centramos a atenção nos processos escolares de ensino e aprendizados dos sujeitos – e não é singular, é plural mesmo, porque há um grupo, uma sala de aula, uma escola, faixas etárias –, surge a clareza de que estamos tratando de uma questão de ordem cultural. Cultural em que sentido? Nós estamos falando da cultura escrita. E essa cultura escrita promove certas sociabilidades, certas possibilidades de convivência comunitária, social. Por isso, a alfabetização não pode ser reduzida ao próprio objeto, à escrita, focando apenas o seu mecanismo mais interno. Seguramente, temos de ensinar a própria tecnologia da escrita, mas essa tecnologia não pode estar separada da dimensão cultural.

Educatrix: Daí a importância do conceito de letramento, não é?
Gilcinei: O termo letramento tem de vir casado com o de alfabetização. As práticas de letramento podem, inclusive, anteceder as práticas de alfabetização. Pense em um artefato cultural como o livro. O que significa a leitura que o professor faz em voz alta de um livro, em termos de aquisição de um certo repertório, socialmente valorizado, ou, mais do que isso, um repertório que tenha ressonâncias e seja representativo na própria cultura da criança? Quando falo cultura da criança, tem a ver com a sua inserção sócio-histórica. Então, nesse aspecto, a aquisição e o desenvolvimento dessa cultura escrita passam, também, por uma construção de repertório, que é de direito da criança. Voltando ao tema do direito à alfabetização, de que falamos há pouco, não estamos falando simplesmente que a pessoa tem o direito de escrever ou de ler corretamente, dentro de certos parâmetros e expectativas arbitrariamente definidos. Estamos falando de possibilidades de acessar conhecimento, de adquirir repertórios culturais e de produzir, de forma dinâmica, esses repertórios.

Educatrix: É preciso pensar o lugar do sujeito que aprende, a partir de estratégias mais ativas.
Gilcinei: As pedagogias mais contemporâneas colocam realmente o sujeito numa posição mais ativa. Não é mais uma questão de estímulo-resposta ou de um mecanicismo em absoluto para os percursos de ensino. Embora, claro, haja uma mecânica a ser aprendida no sentido do funcionamento da escrita. Mas não é simplesmente só o domínio de uma técnica. Por isso, as políticas de alfabetização precisam e devem estar atreladas a outras políticas, como as políticas de leitura. A escola ensina a ler, mas quais são os materiais de leitura que lhes são oferecidos? É de responsabilidade, sim, da escola ter uma boa biblioteca. É de responsabilidade da escola promover a leitura.

Educatrix: Quando pensamos na perspectiva cultural, a promoção da leitura implica atividades coletivas?
Gilcinei: A leitura não é um procedimento exclusivamente de natureza individual ou solitária. Muitas pessoas tomam a leitura como se fosse apenas uma ação individual de apreensão do sujeito de um certo conteúdo. Há um grande consenso em se caracterizar a leitura como prática social. Por isso, são importantes as estratégias como rodas de leitura, resenhas e encenações, as atividades em que essa prática de leitura é concebida como um processo também de socialização, incluindo a sua dimensão linguística. A nossa inserção na cultura letrada significa não só eu ter a capacidade de ler um livro, mas depois ser capaz de responder, se alguém me perguntar o que estou lendo, o que achei, se recomendo ou não. Essa apropriação não é apenas a apropriação de uma técnica ligada a procedimentos de decodificação. É uma vivência cultural que vai permitir essa participação. É o caso também da escrita: escrever para quem, escrever quando etc. Então, o processo de aprendizagem, inclusive de alfabetização, teria de estar inserido nesse processo de produção e negociação de sentido. Essa é uma expressão que sintetiza adequadamente a discussão sobre uma concepção mais dinâmica de leitura.

Educatrix: Tanto na leitura como na escrita?
Gilcinei: A língua escrita não foge disso, porque temos de produzir sentido daquilo que nos é oferecido como material de leitura, e, também, temos de negociar esse sentido, para expressar uma apreciação, mínima que seja, daquilo que é lido. É nessa direção que temos de entender o processo de escrita. Ainda é forte a bandeira de trazer textos autênticos, e não materiais que representem textos falsos, simplesmente para enfatizar a mecânica da escrita. Então, se queremos realmente promover produção e negociação de sentidos, o destaque, no processo de ensino-aprendizagem, não está em algo mecânico, que decorre da falsa ideia de que a alfabetização seria simplesmente transformar as letras em sons ou sons em letras. Esse é um dos componentes, mas não é o único componente da leitura e da escrita.

”a cultura escrita promove certas sociabilidades, certas possibilidades de convivência comunitária,
social.”

Educatrix: Nos últimos anos, o campo da alfabetização tem sido marcado por intensos debates sobre os métodos de ensino. Na sua opinião, o que explica essa chamada “guerra dos métodos”?
Gilcinei: Há uma repercussão política nessa disputa em relação aos materiais didáticos. Mas, falando a partir do meu lugar, como acadêmico, professor, acho que a disputa tem a ver com uma concepção de aprendizagem. Há uma certa concepção em que se acredita na possibilidade de ser possível controlar a aprendizagem a partir de uma ordenação, obedecendo-se a um critério que, por exemplo, hierarquiza graus progressivos de dificuldade. É o que uma cartilha pretende. Esse percurso prévio, portanto, é visto como elemento definidor, facilitador nesse processo. Veja que aqui não estou pensando sobre como a criança aprende. Quando se discute métodos, a pergunta a ser feita é: como eu devo ensinar, em qual hierarquia? Aí entra uma disputa que cada um vai dizer assim: “Não, você tem que começar por aqui, porque é o caminho mais natural, mais fácil, do simples para o mais complexo, há um princípio de controle sobre o processo, sabendo onde começa e onde termina”. Mas é apenas uma ilusão desse controle. Magda Soares falava que não é que não teremos metodologias, mas a pergunta não é como se deve ensinar. A pergunta certa a se fazer é: “Como a criança aprende?”. Aí, sim, se pensamos em como a criança aprende, o aprendizado passa a ser também condicionado pela dimensão cognitiva e pelos contextos sócio-históricos em que essa criança está envolvida. Ou seja, a aprendizagem não está focada apenas no objeto de conhecimento.

Educatrix: E para onde essa discussão leva?
Gilcinei: A criança aprende a partir de hipóteses que cria, e isso traz consequências interessantes. Como a escola e o professor lidam com esse percurso de aprendizado? Muitas vezes, na questão da metodologia, parte-se do princípio de que o acerto precisa aparecer logo, como uma resolução que sinaliza sucesso na apreensão automática do sistema de escrita. Nesse percurso de aprendizagem, justamente o erro e a dúvida vão aparecer e podem ser tomados como algo complicado, que se deve evitar a qualquer custo. Mas um dos ganhos que tivemos nas últimas décadas de pesquisa, quando se indaga sobre como a criança aprende, é que precisamos de um professor com a competência de entender o que a criança sabe e o que ela ainda não sabe. Novamente, caímos numa dimensão política, que pergunta sobre qual é a formação profissional que esse professor precisa ter para favorecer o processo de aprendizagem e, portanto, qualificar o processo pelos materiais que seleciona, as expectativas que constrói, a mediação da relação ao aprendizado, a sistematização a partir de avaliações diagnósticas e assim por diante. É realmente um ganho olhar para a aquisição e o desenvolvimento da escrita e pensar: “Gente, olha que interessante essa hipótese que essa criança trouxe!”. Isso vale tanto para a leitura quanto para a escrita.

Educatrix: Dessa perspectiva, o aprendiz está descobrindo o funcionamento do sistema da escrita.
Gilcinei: Estamos falando de criança, sim, mas o aprendiz, de modo geral, traz essa curiosidade que o move em relação à descoberta de funcionamento de um sistema, o que acontece quando dá uma folheada num livro, olhando a imagem, aqueles rabiscos… o aprendiz está na condição de tentar produzir sentido, negociando com algumas das suas hipóteses como possibilidades plausíveis. Podemos ver esse esforço como um processo de construção de conhecimento, e não simplesmente a partir daquilo que aparentemente falta. Metodologias que valorizam só a cópia e a memorização muitas vezes parecem dar resultado porque estão sob controle, e olha-se apenas para aquelas palavras que foram ensinadas, o texto mais memorizado. E voltamos à questão do início: o que é ser alfabetizado? É isso? Se você trouxer uma palavra nova, que requer os mesmos procedimentos, o aluno seria capaz de decodificar e de interpretar, conferindo significado? Então, a questão dos métodos tem como foco de disputa, acima de tudo, um entendimento sobre a concepção de ensino-aprendizagem. E, claro, isso reverbera em outras políticas, como o papel do professor, nas suas ações de planejamento e de sistematização. A pergunta que orienta a escolha de apenas um método — como ensinar — leva a respostas muito simplista, porque desconsidera a complexidade do aprendizado da escrita.

Educatrix: Essa guerra entre métodos e concepção de aprendizagem permanece forte? Está viva?
Gilcinei: Acho que a disputa sempre estará viva. Ela é apresentada sob diferentes formatos, porque tem a ver, também, com a própria formação inicial do professor. O mito de um método redentor permanece lá. Lemos sempre nos jornais, aqui e ali, notícias sobre métodos redentores. É muito recorrente. Por isso, o empoderamento do professor é uma coisa extremamente importante, para que as suas decisões metodológicas não estejam reduzidas a uma escolha única, arbitrariamente definida como sucesso.


Gilcinei Carvalho
É graduado em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (1988), mestre em Linguística pela Universidade Federal de Minas Gerais (1994) e doutor em Linguística pela Universidade Federal de Minas Gerais (2008). É pesquisador e atual diretor do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale, FaE/UFMG).

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